Lírios brancos
A biografia da Tia Benedita é simples. Morreu quando a idade sobrava na sua contabilidade pessoal e deve ter partido feliz ou, pelo menos, tranquila. A minha sobrinha Maria Luísa achou, durante muito tempo, que o ‘miguelismo’ da matriarca da família a tornava imprópria como figura familiar recomendável num tempo em que só se é miguelista por herança. A pátria satisfaz-se muito com esse retrato a preto e branco onde há vencedores e vencidos e onde toda a glória cabe aos primeiros. Para os segundos, os vencidos – o esquecimento e a desonra. E, sobretudo, o silêncio.
Daqui, do Outono de Moledo, vejo-a ainda sentada – como uma velha senhora, elegante e severa – à beira dos seus lírios, no jardim de Ponte de Lima, banhada pela luz de Outubro e por uma música que ela decerto não ouviria, avessa que era às coisas demasiado profanas. É precisamente o seu anti-romantismo que faz da Tia Benedita uma personagem de romance, daquelas que entraria pela porta principal de ‘O Monte dos Vendavais’ ou de ‘Orgulho e Preconceito’ e figuraria na mais nobre das suas galerias.
Havia nela, justamente, a nobreza das grandes personagens atormentadas pela bondade que não conseguiam transmitir. Essa timidez acompanhou-a até ao fim, mas poucos a entenderam. Desde então – a morte da Tia Benedita, ainda nos anos sessenta, é um marco essencial na vida da família – que os Homem se entregaram ‘aos tempos modernos’, libertos que ficaram dessa memória da pátria do Antigo Regime, anterior à Concessão de Évora Monte e à reforma da ‘ortographya’. Maria Luísa redescobriu-a, como figura tutelar da família, quando – abstraindo-se do ‘miguelismo’ – se deu conta do carácter heróico da sua resistência aos ‘tempos modernos’, justamente. A Tia Benedita escolheu o caminho mais difícil, o mais inusitado, o mais reservado para a glória e a aceitação. O velho Doutor Homem, meu pai, desculpava-lhe todos os excessos, tirando o gosto da senhora pelos lírios brancos, que ele achava um despropósito pouco consentâneo com a paisagem de Ponte de Lima, verdejante e pincelada de ruínas. Bem vistas as coisas, não eram apenas os lírios que estavam desajustados com a paisagem – o mundo também não se adequava muito às derradeiras manias da Tia Benedita. Mas foi uma corajosa resistente, até ao fim.
in Domingo - Correio de Manhã - 26 Outubro 2008
Daqui, do Outono de Moledo, vejo-a ainda sentada – como uma velha senhora, elegante e severa – à beira dos seus lírios, no jardim de Ponte de Lima, banhada pela luz de Outubro e por uma música que ela decerto não ouviria, avessa que era às coisas demasiado profanas. É precisamente o seu anti-romantismo que faz da Tia Benedita uma personagem de romance, daquelas que entraria pela porta principal de ‘O Monte dos Vendavais’ ou de ‘Orgulho e Preconceito’ e figuraria na mais nobre das suas galerias.
Havia nela, justamente, a nobreza das grandes personagens atormentadas pela bondade que não conseguiam transmitir. Essa timidez acompanhou-a até ao fim, mas poucos a entenderam. Desde então – a morte da Tia Benedita, ainda nos anos sessenta, é um marco essencial na vida da família – que os Homem se entregaram ‘aos tempos modernos’, libertos que ficaram dessa memória da pátria do Antigo Regime, anterior à Concessão de Évora Monte e à reforma da ‘ortographya’. Maria Luísa redescobriu-a, como figura tutelar da família, quando – abstraindo-se do ‘miguelismo’ – se deu conta do carácter heróico da sua resistência aos ‘tempos modernos’, justamente. A Tia Benedita escolheu o caminho mais difícil, o mais inusitado, o mais reservado para a glória e a aceitação. O velho Doutor Homem, meu pai, desculpava-lhe todos os excessos, tirando o gosto da senhora pelos lírios brancos, que ele achava um despropósito pouco consentâneo com a paisagem de Ponte de Lima, verdejante e pincelada de ruínas. Bem vistas as coisas, não eram apenas os lírios que estavam desajustados com a paisagem – o mundo também não se adequava muito às derradeiras manias da Tia Benedita. Mas foi uma corajosa resistente, até ao fim.
in Domingo - Correio de Manhã - 26 Outubro 2008
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