Toda a verdade
A minha sobrinha acha que nem toda a verdade é útil. É uma novidade que agradeço ao destino – porque as novas gerações, educadas no respeito pela "transparência", criaram para si próprias a ideia de que tudo se diz e de que tudo merece ser dito. Vindo do século passado (a ideia de "século passado" leva-me à descoberta da penicilina e às primeiras viagens do paquete Niassa), habituado a anotar as catástrofes mais do que os sucessos do género humano, essa ideia nunca me pareceu uma ideia – mas um probema.
"A verdade é boa para quem pode suportá-la." O velho Doutor Homem, meu pai, era avesso a grandes princípios e à sua pompa, mas tinha o vício da frontalidade, coisa que lhe era permitida porque pagava as suas contas e não devia aos bancos. Ele considerava que "a verdade" era uma "coisa moderna", muito equiparável aos romances sem diálogos e às religiões da multidão.
Foi, portanto, com surpresa, que ouvi a minha sobrinha Maria Luísa defender que nem toda a verdade era útil. Ela atravessou dois divórcios e algumas confissões de desamor, elementos muito educativos mas que deixam as suas marcas. Num mundo em que tudo se diz, alguma verdade acaba por magoar. A Tia Benedita, essa inesgotável fonte de exemplos para o reaccionarismo da famíia, recusava-se a dar conselhos porque – dizia – não era uma sentimental. Mas isso é uma condição que se aprende com a juventude e que supõe um carácter frio e pouco contemplativo. Com a revolução dos costumes e a ideia de que deve haver "transparência" só sobrevivem os que estão mais preparados para suportar a rejeição.
Um amor que fica no passado; um familiar que nunca se esquece, uma palavra que fica por dizer, uma dor que regressa de tempos a tempos. A nossa vida é feita de muitos subentendidos, e a verdade não é propriamente o bálsamo de que as nossas feridas necessitam para cicatrizarem.
O Tio Henrique, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos, lembrava que o essencial era manter a capacidade de se perder com dignidade no rasto de uma aventura; o resto eram minudências que interessam a literatura de senhoras e os efeitos da cinematografia, porque a vida é bem mais simples e diz respeito às pequenas coisas que se levam para a eternidade. Por isso, ao ouvir Maria Luísa, limito-me a sorrir. Ela descobriu que há vida depois de nós. Eles, os vindouros, que se tratem de apurar a verdade.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Outubro 2008
"A verdade é boa para quem pode suportá-la." O velho Doutor Homem, meu pai, era avesso a grandes princípios e à sua pompa, mas tinha o vício da frontalidade, coisa que lhe era permitida porque pagava as suas contas e não devia aos bancos. Ele considerava que "a verdade" era uma "coisa moderna", muito equiparável aos romances sem diálogos e às religiões da multidão.
Foi, portanto, com surpresa, que ouvi a minha sobrinha Maria Luísa defender que nem toda a verdade era útil. Ela atravessou dois divórcios e algumas confissões de desamor, elementos muito educativos mas que deixam as suas marcas. Num mundo em que tudo se diz, alguma verdade acaba por magoar. A Tia Benedita, essa inesgotável fonte de exemplos para o reaccionarismo da famíia, recusava-se a dar conselhos porque – dizia – não era uma sentimental. Mas isso é uma condição que se aprende com a juventude e que supõe um carácter frio e pouco contemplativo. Com a revolução dos costumes e a ideia de que deve haver "transparência" só sobrevivem os que estão mais preparados para suportar a rejeição.
Um amor que fica no passado; um familiar que nunca se esquece, uma palavra que fica por dizer, uma dor que regressa de tempos a tempos. A nossa vida é feita de muitos subentendidos, e a verdade não é propriamente o bálsamo de que as nossas feridas necessitam para cicatrizarem.
O Tio Henrique, o bibliófilo de São Pedro dos Arcos, lembrava que o essencial era manter a capacidade de se perder com dignidade no rasto de uma aventura; o resto eram minudências que interessam a literatura de senhoras e os efeitos da cinematografia, porque a vida é bem mais simples e diz respeito às pequenas coisas que se levam para a eternidade. Por isso, ao ouvir Maria Luísa, limito-me a sorrir. Ela descobriu que há vida depois de nós. Eles, os vindouros, que se tratem de apurar a verdade.
in Domingo - Correio da Manhã - 19 Outubro 2008
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