O riso da tia Guilhermina
A Tia Guilhermina — nunca antes falei da Tia Guilhermina. A virtude principal das velharias é a de se conservarem por mais tempo do que o necessário, coisa que acontece com os álbuns de fotografia, relíquias onde vamos todos recordando os nossos mortos. Mais: onde vamos recordando os vivos de cada época, rodeados daquilo que era o essencial – uma família, um céu claro, uma roupa que já se não usa, uma ventania que despenteia um velho tio, uma árvore que entretanto desapareceu, um muro que se transformou em ruínas.
Pois a Tia Guilhermina ria muito. As fotografias que se mantêm nos nossos arquivos – esses álbuns de glórias – mostram-na ora apenas sorridente ora risonha mas muito raramente de semblante carregado. A ideia do "semblante carregado" é uma das grandes características dos Homem de antanho, vigiados pelo peso e pela responsabilidade da História ou pelas recordações de algum sofrimento, tal é a ausência de riso nessas fotografias. Antigamente ria-se com parcimónia; antigamente chorava-se por amor – e até se sofria; antigamente, as maravilhosas tias da família (as de Ponte de Lima à cabeça, com a Tia Benedita transformada em matriarca inquestionável, mas também as dos Arcos, de Viana ou de Alvito, no longínquo Alentejo), sussurravam e eram educadoras inflexíveis; antigamente, o Outono era tépido e a "época balnear" despedia-se de nós com cerimónia, às arrecuas, com uma derradeira vénia melancólica, desprendendo-se suavemente das folhas de calendário. A Tia Guilhermina, nessa ordem perfeita e severa (até a melancolia tinha uma aura de severidade conservadora) era uma excepção feliz e ruidosa, carregada de boas memórias. Suponho que a minha família lhe recorda – ainda hoje – a generosidade, o arroz de pato e o assado da Páscoa, as suas histórias de viagens que cruzavam o pequeno planisfério do Minho, os jardins da sua casa dos Arcos de Valdevez. Eu recordo o riso. Tudo isso – e o riso. É um riso que atravessa os anos, que dobra este século, que me lembra um tempo de vivos e de felicidade sem angústia, certamente instalado apenas no passado como um sinal para os vindouros.
A falar verdade, nessa altura não existiam vindouros. A palavra desapareceu das nossas conversas; ninguém quer ser do tempo que há-de vir. Só o riso da Tia Guilhermina se prolonga como uma bênção da eternidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Outubro 2008
Pois a Tia Guilhermina ria muito. As fotografias que se mantêm nos nossos arquivos – esses álbuns de glórias – mostram-na ora apenas sorridente ora risonha mas muito raramente de semblante carregado. A ideia do "semblante carregado" é uma das grandes características dos Homem de antanho, vigiados pelo peso e pela responsabilidade da História ou pelas recordações de algum sofrimento, tal é a ausência de riso nessas fotografias. Antigamente ria-se com parcimónia; antigamente chorava-se por amor – e até se sofria; antigamente, as maravilhosas tias da família (as de Ponte de Lima à cabeça, com a Tia Benedita transformada em matriarca inquestionável, mas também as dos Arcos, de Viana ou de Alvito, no longínquo Alentejo), sussurravam e eram educadoras inflexíveis; antigamente, o Outono era tépido e a "época balnear" despedia-se de nós com cerimónia, às arrecuas, com uma derradeira vénia melancólica, desprendendo-se suavemente das folhas de calendário. A Tia Guilhermina, nessa ordem perfeita e severa (até a melancolia tinha uma aura de severidade conservadora) era uma excepção feliz e ruidosa, carregada de boas memórias. Suponho que a minha família lhe recorda – ainda hoje – a generosidade, o arroz de pato e o assado da Páscoa, as suas histórias de viagens que cruzavam o pequeno planisfério do Minho, os jardins da sua casa dos Arcos de Valdevez. Eu recordo o riso. Tudo isso – e o riso. É um riso que atravessa os anos, que dobra este século, que me lembra um tempo de vivos e de felicidade sem angústia, certamente instalado apenas no passado como um sinal para os vindouros.
A falar verdade, nessa altura não existiam vindouros. A palavra desapareceu das nossas conversas; ninguém quer ser do tempo que há-de vir. Só o riso da Tia Guilhermina se prolonga como uma bênção da eternidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 12 Outubro 2008
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