Os casamentos
Há, segundo suponho e os jornais me informam, uma série de polémicas, muito tépidas e coradas de vergonha, em relação aos casamentos entre pessoas do mesmo sexo. Habituado à passagem dos anos, a novidade não me choca nem me deixa eufórico – pelo contrário, a maior parte das mudanças merece-me cada vez mais indiferença e misericórdia. A ideia de que 'as mudanças' podem mudar o Mundo (para melhor, suponho) requer não apenas uma prova muito mais substancial como também um atestado da sua utilidade.
Voluntariamente afastado das alegrias do matrimónio (que me pouparam o conhecimento de ciências modernas como a puericultura ou os hábitos sofisticados da vida das cidades, como a ida ao psicanalista), olho a questão com alguma distância e relativa curiosidade, embora me pareça que quando se fala de família já não é de família que se fala mas de um ‘ajuntamento doméstico’ movido por interesses de natureza muito ligeira. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda em Braga (mas que se inclina sobre o lado direito das coisas quando se aproxima de Moledo), considera que eu não sou claro quanto à matéria e que 'a família' e 'os afectos' mudaram; por outras palavras, que eu sou contra o casamento de homossexuais. É verdade.
Não fui educado no respeito pela ordem das coisas em vão. Passei vinte anos refugiado na província, longe da vida sofisticada das cidades – tudo para que me não incomodassem. E, afinal, com que finalidade? Para que, de repente, a minha sobrinha, mãe de dois sobrinhos-netos que se entretêm a arrancar a folhagem dos hibiscos, atravesse o corredor desta casa de Moledo (o que divide a cozinha da sala de jantar) a fim de me chamar 'múmia' pelo simples facto de, nos últimos dez, ou – vá lá – quinze anos, não me ter debruçado sobre o magno problema do casamento de homossexuais.
O velho Doutor Homem, meu pai, achava intolerável que o Estado (na época representado pelo espectro magro e fugidio do dr. Salazar) se imiscuísse nas vidas e costumes dos privados e das famílias. Acharia também intolerável que o Estado (representante, para todos os efeitos, das multidões da democracia) lhe impusesse a aceitação daquilo para que não estava preparado. Pessoalmente, ainda, sou a pessoa menos indicada para discutir o tema do casamento: nunca casei. Mas defendo o direito de qualquer um à infelicidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 Outubro 2008
Voluntariamente afastado das alegrias do matrimónio (que me pouparam o conhecimento de ciências modernas como a puericultura ou os hábitos sofisticados da vida das cidades, como a ida ao psicanalista), olho a questão com alguma distância e relativa curiosidade, embora me pareça que quando se fala de família já não é de família que se fala mas de um ‘ajuntamento doméstico’ movido por interesses de natureza muito ligeira. A minha sobrinha Maria Luísa, que vota no Bloco de Esquerda em Braga (mas que se inclina sobre o lado direito das coisas quando se aproxima de Moledo), considera que eu não sou claro quanto à matéria e que 'a família' e 'os afectos' mudaram; por outras palavras, que eu sou contra o casamento de homossexuais. É verdade.
Não fui educado no respeito pela ordem das coisas em vão. Passei vinte anos refugiado na província, longe da vida sofisticada das cidades – tudo para que me não incomodassem. E, afinal, com que finalidade? Para que, de repente, a minha sobrinha, mãe de dois sobrinhos-netos que se entretêm a arrancar a folhagem dos hibiscos, atravesse o corredor desta casa de Moledo (o que divide a cozinha da sala de jantar) a fim de me chamar 'múmia' pelo simples facto de, nos últimos dez, ou – vá lá – quinze anos, não me ter debruçado sobre o magno problema do casamento de homossexuais.
O velho Doutor Homem, meu pai, achava intolerável que o Estado (na época representado pelo espectro magro e fugidio do dr. Salazar) se imiscuísse nas vidas e costumes dos privados e das famílias. Acharia também intolerável que o Estado (representante, para todos os efeitos, das multidões da democracia) lhe impusesse a aceitação daquilo para que não estava preparado. Pessoalmente, ainda, sou a pessoa menos indicada para discutir o tema do casamento: nunca casei. Mas defendo o direito de qualquer um à infelicidade.
in Domingo - Correio da Manhã - 5 Outubro 2008
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