Uma ocupação civilizadora
Isabelle, a namorada holandesa do meu sobrinho Pedro, acaba de chegar aos areais de Moledo – e prepara-se para enfrentar uma multidão preguiçosa e educada para a lassidão. Para o seu temperamento, moldado pela neblina da ilha de Ameland, há aqui um problema. A jovem bióloga, que veio da distante Frísia ou da ocupada Amesterdão (creio que vai à Frísia natal uma ou duas vezes por ano) para um intervalo no seu doutoramento acerca de uma espécie rara de algas – foge-me ao entendimento – tinha, a princípio, uma vaga esperança de obter ilustração nas colinas verdejantes do Minho, perguntando amiúde pelos museus, igrejas, ruínas românicas, bibliotecas e pontos de interesse vagamente etnológico. Ela vem de uma civilização que preza a ocupação do tempo e prega a sua utilidade. Foi assim que os holandeses chegaram ao Pernambuco e o civilizaram em poucos anos, enchendo a enlameada e pantanosa Recife do século XVII de museus, bibliotecas, pontes, jardins e até observatórios astronómicos, transportando para os trópicos hordas de cientistas e de curiosos. Os portugueses, depois da batalha dos montes Guararapes – expulsando definitivamente a casa de Orange com a ajuda dos escravos e de índios – depressa se apropriaram dessa mancha de civilização, esvaziando-a e pilhando-a com método e determinação. Até ao século XIX não consta que as bibliotecas do Recife se tenham multiplicado.
Portanto, como este é o seu segundo mês de Agosto nas areias de Moledo, já não se preocupa em introduzir um módico de "vida cultural" nas suas férias – logo ao primeiro ano compreendeu que a nossa originalidade (se bem que nem toda a originalidade seja premiável) vinha da preguiça endémica que povoa as nossas terras. "Verão é Verão", explicou-lhe Dona Elaine, a governanta de Moledo, com gestos apropriados, tentando fazer-lhe ver que estava rodeada de selvagens sem fé e sem brio. Isabelle tentou, ainda que moderadamente, saber se poderiam ir a Braga para visitar a biblioteca do Dr. Barreto Nunes (que eu tinha gabado com ditirambos, na varanda, depois de um jantar palavroso) – mas o meu sobrinho Pedro explicou-lhe que "havia muita gente". Ela sorriu, mostrando aquela luz de esperança no seu rosto de maçãs rosadas (o sol de Moledo, juntamente com o iodo, produzem milagres): "Muita gente na biblioteca, em Agosto?" "Não, muita gente em Braga." Ela quis saber o que fazia tanta gente em Braga, no meio da rua. "Nada", respondeu o meu sobrinho.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Agosto 2008
Portanto, como este é o seu segundo mês de Agosto nas areias de Moledo, já não se preocupa em introduzir um módico de "vida cultural" nas suas férias – logo ao primeiro ano compreendeu que a nossa originalidade (se bem que nem toda a originalidade seja premiável) vinha da preguiça endémica que povoa as nossas terras. "Verão é Verão", explicou-lhe Dona Elaine, a governanta de Moledo, com gestos apropriados, tentando fazer-lhe ver que estava rodeada de selvagens sem fé e sem brio. Isabelle tentou, ainda que moderadamente, saber se poderiam ir a Braga para visitar a biblioteca do Dr. Barreto Nunes (que eu tinha gabado com ditirambos, na varanda, depois de um jantar palavroso) – mas o meu sobrinho Pedro explicou-lhe que "havia muita gente". Ela sorriu, mostrando aquela luz de esperança no seu rosto de maçãs rosadas (o sol de Moledo, juntamente com o iodo, produzem milagres): "Muita gente na biblioteca, em Agosto?" "Não, muita gente em Braga." Ela quis saber o que fazia tanta gente em Braga, no meio da rua. "Nada", respondeu o meu sobrinho.
in Domingo - Correio da Manhã - 10 Agosto 2008
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