A Rússia move-se
A Tia Benedita não gostava da Rússia, evidentemente. Ela tinha assistido, no seu tempo – os Homem vêm da Antiguidade –, à queda dos czares e à vitória dos vermelhos. E o essencial era que os czares defendiam a Igreja, mesmo que fosse outra Igreja que ela não entendia, e o bolchevismo fazia parte do vastíssimo conjunto das obras de Satanás. Minudências de história política não a interessavam muito, e o gosto pelo detalhe, pelo pormenor, pelas variantes, eram coisas que não atrapalhavam a sua 'visão geral do mundo' – que era pessimista e que partia do princípio de que Ponte de Lima teria de continuar a ser guardiã da civilização. O resto eram consequências da concessão de Évora Monte, que culminaria na subida ao poder de Afonso Costa. O velho Doutor Homem, meu pai, tentou por diversas vezes chamá-la à razão, estabelecendo uma distinção fundamental entre a vitória dos 'liberais' nas guerras civis e a ascensão do demagogo republicano. Foi escusado porque a Tia Benedita achava que a imoralidade em geral, o ateísmo e as minissaias (ela não saberia pronunciar o nome de Mary Quant) eram também obra da República e da maçonaria. O meu pai desistiu e passou a limitou-se a achar-lhe graça, considerando-a uma espécie de monumento nacional, ao nível da abóboda do Mosteiro de Alcobaça ou das Cortes de Lamego, para o caso de terem existido.
Ou seja, os exércitos da Rússia, que esta semana estiveram nas primeiras páginas dos jornais invadindo a Geórgia, não constituiriam uma surpresa para a matriarca da família.
A mim, a Rússia lembra-me sobretudo o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de São Pedro de Arcos, celibatário como eu. Um dos seus amores – o derradeiro mas, provavelmente, o mais intenso e definitivo – foi a sua 'princesa russa'. Nesses anos sessenta ele atravessou a Europa várias vezes para se encontrar com Svetlana, cuja família vinha das margens Cáspio – que tinha abandonado depois da revolução. O velho jurisconsulto minhoto havia de morrer jovem, o que não constituiria uma contradição de termos; limitou-se a sobreviver dois anos à sua paixão, que repousa perto de Genebra, numa pequena aldeia das montanhas.
Na 'Brasileira de Prazins', os padres miguelistas também falavam da Rússia. Eram outros tempos – nessa altura, os czares intercediam pelo príncipe proscrito e um dos companheiros do senhor abade de S. Gens de Calvos limitou-se a observar: "A Rússia move-se, é o que é."
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Agosto 2008
Ou seja, os exércitos da Rússia, que esta semana estiveram nas primeiras páginas dos jornais invadindo a Geórgia, não constituiriam uma surpresa para a matriarca da família.
A mim, a Rússia lembra-me sobretudo o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de São Pedro de Arcos, celibatário como eu. Um dos seus amores – o derradeiro mas, provavelmente, o mais intenso e definitivo – foi a sua 'princesa russa'. Nesses anos sessenta ele atravessou a Europa várias vezes para se encontrar com Svetlana, cuja família vinha das margens Cáspio – que tinha abandonado depois da revolução. O velho jurisconsulto minhoto havia de morrer jovem, o que não constituiria uma contradição de termos; limitou-se a sobreviver dois anos à sua paixão, que repousa perto de Genebra, numa pequena aldeia das montanhas.
Na 'Brasileira de Prazins', os padres miguelistas também falavam da Rússia. Eram outros tempos – nessa altura, os czares intercediam pelo príncipe proscrito e um dos companheiros do senhor abade de S. Gens de Calvos limitou-se a observar: "A Rússia move-se, é o que é."
in Domingo - Correio da Manhã - 31 Agosto 2008
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