O calendário das estações
Os veraneantes de Moledo queixam-se "da nortada" – referem-se a uma suavíssima brisa que empurra o aroma da resina até perto do areal, mostrando que os pinhais existem e que o olfacto é um bem a proteger. Esse vento (eu uso a expressão "suavíssima brisa" por pura ironia) não é o mistral do Mediterrâneo, tépido – pelo contrário, foi tocado pelas montanhas ligeiramente frias do Minho e da Galiza, e rende-se com harmonia às águas azuis-fortes do mar da minha terra.
Os veraneantes, no entanto, não gostam e não apreciam arroubos poéticos de um velho Matusalém conformista e conservador. Dizem-no com energia enquanto se afligem, comentando o aquecimento global. Têm tendências estranhamente autoritárias porque, se pudessem, decretavam a canícula entre a Apúlia e Cerveira só para confirmarem que tinha chegado o Verão e eles participavam naquele amplexo de suor, refrescos exagerados e sol inclemente. A natureza, no entanto, está do meu lado – não porque eu tenha razão, mas apenas porque lhe estou afeiçoado e o hábito de oitenta e oito anos me dá garantias de alguma regularidade. A minha sobrinha Maria Luísa, que arrasta os seus filhos para a praia a meio da manhã, a fim de os soltar no areal com a promessa da redenção solar, repete miraculosamente os gestos de Dona Ester, minha mãe, que achava o Verão uma manifestação da bondade dos elementos. Maria Luísa, no entanto, precisou de ser industriada; ela pensava, como a generalidade dos portugueses da sua idade, que o calendário das estações do ano andava alinhado com a precisão de um computador e que a meteorologia se definia nos manuais de geografia clássica. Moledo ensinou a todos que a natureza é um prodígio de contradições. Não há Verão de Moledo sem chuva; não há Verão de Moledo sem nortada nem manhãs enevoadas (a simpática referência à "neblina matinal" que ilustrava as previsões do Dr. Anthímio de Azevedo ainda antes de o Homem ter ido à Lua).
O velho Doutor Homem, que conheceu a Moledo de outros tempos, ainda mais friorenta e nos antípodas dos trópicos e das Caraíbas, recomendava às noras recém-chegadas à família "que levassem um casaquinho" na trouxa da praia. Elas pensavam que o velho causídico tinha problemas com a nudez. Não; ele era um velho sátiro entre os pinhais do Minho. Simplesmente, gostava que as pessoas se ambientassem.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Agosto 2008
Os veraneantes, no entanto, não gostam e não apreciam arroubos poéticos de um velho Matusalém conformista e conservador. Dizem-no com energia enquanto se afligem, comentando o aquecimento global. Têm tendências estranhamente autoritárias porque, se pudessem, decretavam a canícula entre a Apúlia e Cerveira só para confirmarem que tinha chegado o Verão e eles participavam naquele amplexo de suor, refrescos exagerados e sol inclemente. A natureza, no entanto, está do meu lado – não porque eu tenha razão, mas apenas porque lhe estou afeiçoado e o hábito de oitenta e oito anos me dá garantias de alguma regularidade. A minha sobrinha Maria Luísa, que arrasta os seus filhos para a praia a meio da manhã, a fim de os soltar no areal com a promessa da redenção solar, repete miraculosamente os gestos de Dona Ester, minha mãe, que achava o Verão uma manifestação da bondade dos elementos. Maria Luísa, no entanto, precisou de ser industriada; ela pensava, como a generalidade dos portugueses da sua idade, que o calendário das estações do ano andava alinhado com a precisão de um computador e que a meteorologia se definia nos manuais de geografia clássica. Moledo ensinou a todos que a natureza é um prodígio de contradições. Não há Verão de Moledo sem chuva; não há Verão de Moledo sem nortada nem manhãs enevoadas (a simpática referência à "neblina matinal" que ilustrava as previsões do Dr. Anthímio de Azevedo ainda antes de o Homem ter ido à Lua).
O velho Doutor Homem, que conheceu a Moledo de outros tempos, ainda mais friorenta e nos antípodas dos trópicos e das Caraíbas, recomendava às noras recém-chegadas à família "que levassem um casaquinho" na trouxa da praia. Elas pensavam que o velho causídico tinha problemas com a nudez. Não; ele era um velho sátiro entre os pinhais do Minho. Simplesmente, gostava que as pessoas se ambientassem.
in Domingo - Correio da Manhã - 17 Agosto 2008
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