Há 89 anos
Nessa altura, a Espanha era um continente. A frase é excessiva mas serve para dar conta do deslumbramento familiar sempre que se ultrapassava a muralha invisível de Fuentes de Oñoro ou de Tuy para entrar no grande desconhecido – e o grande desconhecido eram aquelas paisagens diabólicas a que se tinha acesso depois de preencher os papéis diante de guardas civis de tricórnio, soturnos e bigodudos. O velho Doutor Homem, meu pai, que durante anos visitou o Dr. Cunha Leal no seu exílio da Corunha (facto a que a Tia Benedita atribuía razões ocultas – como comer ostras e visitar mulheres), lembrava-se sempre de El Ferrol, aliás El Ferrol del Caudillo, para associar à cidade a genealogia política do Generalíssimo. Ele não gostava do Generalíssimo como não gostava do dr. Salazar, o que se várias vezes se apresentou ser um problema para a família que, impedida de apreciar os ditadores ibéricos, se encontrava a braços com o trabalho infernal de não pactuar com o bolchevismo ou com a devassidão – para a Tia Benedita era o mesmo.
Mas a travessia da fronteira servia para que o meu pai respirasse. Dona Ester, minha mãe, que era pouco ou nada sorumbática, gostava desse risco invisível traçado na paisagem, dividindo os pastos verdejantes do Minho, bordejados a videiras que trepavam pelas encostas, da solidão melancólica da Galiza. Ela conhecia as histórias dos valdevinos da família – uma casta irresponsável e divertida, que conhecia os restaurantes do Lugo e de Salamanca, da Corunha e de Pontevedra, bem como as estradas que levavam ao “outro lado”.
O “outro lado” era a Europa, que só começava nas planícies de Bordéus. Entre Irún e Bordéus havia um interstício romântico e familiar, onde o velho Doutor Homem, meu pai, ainda solteiro, lhe ofereceu o primeiro ramo de flores – numa varanda de certo hotel de Biarritz onde a burguesia do Porto (pelo menos a burguesia que tinha leituras, sabia francês e apreciava a solidão, que era um traço de distinção), que na época era ligeiramente aristocrata, passava uma semana de cosmopolitismo antes de ir a Paris.
Naquele tempo, o meu pai vestia fatos de Verão e a minha mãe descia as escadas de madeira do hotel – que iam até uma praia de águas geladas e escuras – sem saberem que oitenta anos depois esse momento podia ser recordado. Podia. Fez esta semana oitenta e nove anos.
in Domingo – Correio da Manhã - 27 Julho 2008
Mas a travessia da fronteira servia para que o meu pai respirasse. Dona Ester, minha mãe, que era pouco ou nada sorumbática, gostava desse risco invisível traçado na paisagem, dividindo os pastos verdejantes do Minho, bordejados a videiras que trepavam pelas encostas, da solidão melancólica da Galiza. Ela conhecia as histórias dos valdevinos da família – uma casta irresponsável e divertida, que conhecia os restaurantes do Lugo e de Salamanca, da Corunha e de Pontevedra, bem como as estradas que levavam ao “outro lado”.
O “outro lado” era a Europa, que só começava nas planícies de Bordéus. Entre Irún e Bordéus havia um interstício romântico e familiar, onde o velho Doutor Homem, meu pai, ainda solteiro, lhe ofereceu o primeiro ramo de flores – numa varanda de certo hotel de Biarritz onde a burguesia do Porto (pelo menos a burguesia que tinha leituras, sabia francês e apreciava a solidão, que era um traço de distinção), que na época era ligeiramente aristocrata, passava uma semana de cosmopolitismo antes de ir a Paris.
Naquele tempo, o meu pai vestia fatos de Verão e a minha mãe descia as escadas de madeira do hotel – que iam até uma praia de águas geladas e escuras – sem saberem que oitenta anos depois esse momento podia ser recordado. Podia. Fez esta semana oitenta e nove anos.
in Domingo – Correio da Manhã - 27 Julho 2008
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