Homenagem à Tia Benedita
A Tia Benedita tinha com o Verão uma relação controversa que, no fundo, era uma espécie de mal-entendido. Ela julgava que o Verão propiciava uma tendência para a amoralidade – não estava longe da verdade, se bem que a amoralidade não fosse inteiramente reprovável por uma ou duas semanas de pousio.
Habituados a ouvir histórias em que várias gerações da família se dedicavam a escandalizar os ouvidos da Tia Benedita, não custava perceber que ela fingia o suficiente para não se sentir desacreditada. Ao senhor Dom Miguel, por exemplo, desculpava as fragilidades da adolescência – que atribuía às más companhias –, e justificava os rapazes da família com a influência dos "desconchavos dos dias de hoje". Ela ainda não conhecia o papel das hormonas e certamente acharia que o Dr. Freud era um agente do bolchevismo internacional em alegre compadrio com Afonso Costa e a Carbonária. Ora, todos nós cultivámos esta imagem porque nos convinha a existência de uma personagem familiar do tempo de D. Sancho II, o Pio – mas a Tia Benedita não perseguia a imoralidade com o imaginário látego do ultramontanismo; pelo contrário, ela apreciava, sem desdém (e até com um pouco de ironia), a tendência natural para o abismo e para o pecado; simplesmente, achava que o segredo e uma certa hipocrisia eram necessários para que "a sociedade" não se parecesse com o despautério dos bailaricos de um arraial. Esta necessidade de ordem incomodou-a até ao fim dos seus dias, sem que percebesse que entre o género humano e a necessidade de pecar havia um compadrio desesperado.
O Verão, com os seus decotes, barras das saias subidas, correrias até às clareiras das florestas, banhos nas curvas dos rios, suores fatais em rostos trigueiros e minhotos – eram uma ameaça pública a essa ordem imaginária, que ela tinha decidido defender como uma questão pessoal.
No fundo, tal como acontece frequentemente com os utopistas modernos da nossa esquerda, ela era uma esteta. Não apenas se julgava a viver na época errada como, de facto, vivia na época errada. E isso fazia da Tia Benedita uma personagem de romance de costumes, irrepreensível nos seus vestidos de domingo, observadora e excessivamente irónica, de quem quase todos nós aprendemos o cepticismo e o pessimismo se bem que por motivos diferentes. O velho Doutor Homem, meu pai, gabava-lhe a coragem extrema de não ter abdicado do seu tempo, mesmo vivendo noutro, inteiramente diferente.
in Domingo - Correio da Manhã - 3 Agosto 2008
Habituados a ouvir histórias em que várias gerações da família se dedicavam a escandalizar os ouvidos da Tia Benedita, não custava perceber que ela fingia o suficiente para não se sentir desacreditada. Ao senhor Dom Miguel, por exemplo, desculpava as fragilidades da adolescência – que atribuía às más companhias –, e justificava os rapazes da família com a influência dos "desconchavos dos dias de hoje". Ela ainda não conhecia o papel das hormonas e certamente acharia que o Dr. Freud era um agente do bolchevismo internacional em alegre compadrio com Afonso Costa e a Carbonária. Ora, todos nós cultivámos esta imagem porque nos convinha a existência de uma personagem familiar do tempo de D. Sancho II, o Pio – mas a Tia Benedita não perseguia a imoralidade com o imaginário látego do ultramontanismo; pelo contrário, ela apreciava, sem desdém (e até com um pouco de ironia), a tendência natural para o abismo e para o pecado; simplesmente, achava que o segredo e uma certa hipocrisia eram necessários para que "a sociedade" não se parecesse com o despautério dos bailaricos de um arraial. Esta necessidade de ordem incomodou-a até ao fim dos seus dias, sem que percebesse que entre o género humano e a necessidade de pecar havia um compadrio desesperado.
O Verão, com os seus decotes, barras das saias subidas, correrias até às clareiras das florestas, banhos nas curvas dos rios, suores fatais em rostos trigueiros e minhotos – eram uma ameaça pública a essa ordem imaginária, que ela tinha decidido defender como uma questão pessoal.
No fundo, tal como acontece frequentemente com os utopistas modernos da nossa esquerda, ela era uma esteta. Não apenas se julgava a viver na época errada como, de facto, vivia na época errada. E isso fazia da Tia Benedita uma personagem de romance de costumes, irrepreensível nos seus vestidos de domingo, observadora e excessivamente irónica, de quem quase todos nós aprendemos o cepticismo e o pessimismo se bem que por motivos diferentes. O velho Doutor Homem, meu pai, gabava-lhe a coragem extrema de não ter abdicado do seu tempo, mesmo vivendo noutro, inteiramente diferente.
in Domingo - Correio da Manhã - 3 Agosto 2008
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