As energias do espírito
Dona Ester, minha mãe, tinha uma aversão especial por bruxarias, ao contrário do velho Doutor Homem, meu pai, que apreciava histórias de fantasmas e de aparições – ele lera os clássicos da literatura fantástica inglesa, onde havia uma certa promiscuidade entre espiritismo, magia negra, superstição simples e histórias bem contadas. A tudo isso ele acrescentou a ironia, para desvalorizar o tema e irritar a família. Já Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, gosta de recordar casos ocorridos aqui e ali, aparições iminentes de antepassados (sobretudo junto dos cruzeiros de granito das aldeias de Cerveira) e até premonições sobre desgraças futuras, especialização que ela atribui a uma velha tia de Freixieiro do Soutelo.
Hoje há tradução para tudo isto, que são velharias de província. As minhas irmãs, que se especializaram em 'feng shui' e acompanham com curiosidade os relatos das religiões mais populares (um vasto contimente que vai do budismo aos orixás) e os horóscopos das revistas, têm nomes mais adequados aos novos tempos. Frequentemente falam de 'energias', como uma espécie de correntes invisíveis semelhantes às descargas eléctricas das trovoadas ou às brisas dos pinhais de Vila Praia de Âncora. A ideia é simpática, mas trata-se sempre de coisas invisíveis.
Eu, que até aos anos oitenta supunha que o Tarot era um jogo de cartas semelhante ao brídge, sinto especial simpatia por essas aventuras do espírito – mas retenho a ironia do velho Doutor Homem, meu pai, que era um prodígio de racionalidade. A questão é que as histórias de fantasmas da literatura inglesa – que ele lia abundantemente – não são as histórias de fantasmas do Minho. E as histórias de fantasmas do Minho não têm o requinte das 'energias espirituais' detectadas pelas minhas irmãs. Vejo, em tudo isso, a "necessidade das coisas invisíveis", uma espécie de conforto para os males da existência ou para as vidas incompletas. Por preguiça, nunca me aventurei nesses caminhos. A minha economia de meios não me permitiu ir além da espiritualidade dos pinhais de Moledo, recortados sobre a espuma das ondas. Lá, ao longe, a montanha escura de Santa Tecla, com as suas cruzes celtas, é o meu grande apelo do invisível. Isso deve-se, suponho, ao nevoeiro das manhãs do Minho, que não deixa ver grande coisa para lá da Ínsua.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Julho 2008
Hoje há tradução para tudo isto, que são velharias de província. As minhas irmãs, que se especializaram em 'feng shui' e acompanham com curiosidade os relatos das religiões mais populares (um vasto contimente que vai do budismo aos orixás) e os horóscopos das revistas, têm nomes mais adequados aos novos tempos. Frequentemente falam de 'energias', como uma espécie de correntes invisíveis semelhantes às descargas eléctricas das trovoadas ou às brisas dos pinhais de Vila Praia de Âncora. A ideia é simpática, mas trata-se sempre de coisas invisíveis.
Eu, que até aos anos oitenta supunha que o Tarot era um jogo de cartas semelhante ao brídge, sinto especial simpatia por essas aventuras do espírito – mas retenho a ironia do velho Doutor Homem, meu pai, que era um prodígio de racionalidade. A questão é que as histórias de fantasmas da literatura inglesa – que ele lia abundantemente – não são as histórias de fantasmas do Minho. E as histórias de fantasmas do Minho não têm o requinte das 'energias espirituais' detectadas pelas minhas irmãs. Vejo, em tudo isso, a "necessidade das coisas invisíveis", uma espécie de conforto para os males da existência ou para as vidas incompletas. Por preguiça, nunca me aventurei nesses caminhos. A minha economia de meios não me permitiu ir além da espiritualidade dos pinhais de Moledo, recortados sobre a espuma das ondas. Lá, ao longe, a montanha escura de Santa Tecla, com as suas cruzes celtas, é o meu grande apelo do invisível. Isso deve-se, suponho, ao nevoeiro das manhãs do Minho, que não deixa ver grande coisa para lá da Ínsua.
in Domingo - Correio da Manhã - 6 Julho 2008
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