As saudades, em Moledo
Mesmo sendo – durante grande parte da sua adolescência e por alguns anos da sua idade madura – um 'dandy', o velho doutor Homem, meu pai, não deixava passar um Verão sem cumprir aquilo que ele chamava, por desfastio, a sua "via-sacra do costume". Era ironia, evidentemente; como nunca teve vocação para o sofrimento voluntário limitava-se a ironizar enquanto reunia uma pequena reserva de livros e alguns discos escolhidos (nunca esquecendo Anna Moffo, a sua soprano de eleição) destinados a Ponte de Lima.
Passados mais de cinquenta ou sessenta anos recordo – a esta distância, a que me separa da minha adolescência – aqueles gestos providenciais com que a minha vida ficou marcada: o de escolher o lado da varanda onde o sol bateria mais tarde, o de aguardar que um resto de poeira assentasse sobre as lajes do pátio, junto dos canteiros.
Verifico que, a esta distância, esse mundo se aproximava da perfeição. Isso acontece frequentemente com o passado, que brilha como um raio de luz na escuridão do tempo.
Satisfaço-me com o facto de esse mundo ter existido. Na minha memória, esses momentos são doces e saudosos, mas sei que não regressam. O mundo não só mudou, como diria qualquer conversador, como também perdeu qualidades. A minha sobrinha Maria Luísa achou, por instantes (antes de recuperar a manha da política e a sensatez geral), que a felicidade estava mais perto da terra nesse tempo, antes da democracia, da televisão a cores e dos romances escritos em conflito com a gramática. Expliquei que havia coisas boas e coisas más, e que o mundo favorece com apetite e entusiasmo aquilo que é mau. Isto vai contra as ideias da esquerdista da família, porque – a seu ver – a humanidade seria "naturalmente boa", não fosse "a sociedade". Ora, eu "a sociedade" não conheço. Vivo entre caminhos que vão dar ao consultório do meu médico de Viana, ao passeio junto da praia (diante da Ínsua, onde Moledo é mais melancólico ao fim da tarde) ou à loja de jornais onde me abasteço de vício e maledicência. Comparado com esta misantropia, só a tortura ultramontana da Tia Benedita, que via o espírito de Afonso Costa pairar sobre a Pátria, para esmagar as igrejas e matar à fome o Príncipe proscrito. Tentei várias vezes convencê-la de que o senhor Dom Miguel tinha morrido na Alemanha, junto da Princesa Adelaide, muito antes da República. Ela não acreditava. Também tenho saudades dela.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Julho 2008
Passados mais de cinquenta ou sessenta anos recordo – a esta distância, a que me separa da minha adolescência – aqueles gestos providenciais com que a minha vida ficou marcada: o de escolher o lado da varanda onde o sol bateria mais tarde, o de aguardar que um resto de poeira assentasse sobre as lajes do pátio, junto dos canteiros.
Verifico que, a esta distância, esse mundo se aproximava da perfeição. Isso acontece frequentemente com o passado, que brilha como um raio de luz na escuridão do tempo.
Satisfaço-me com o facto de esse mundo ter existido. Na minha memória, esses momentos são doces e saudosos, mas sei que não regressam. O mundo não só mudou, como diria qualquer conversador, como também perdeu qualidades. A minha sobrinha Maria Luísa achou, por instantes (antes de recuperar a manha da política e a sensatez geral), que a felicidade estava mais perto da terra nesse tempo, antes da democracia, da televisão a cores e dos romances escritos em conflito com a gramática. Expliquei que havia coisas boas e coisas más, e que o mundo favorece com apetite e entusiasmo aquilo que é mau. Isto vai contra as ideias da esquerdista da família, porque – a seu ver – a humanidade seria "naturalmente boa", não fosse "a sociedade". Ora, eu "a sociedade" não conheço. Vivo entre caminhos que vão dar ao consultório do meu médico de Viana, ao passeio junto da praia (diante da Ínsua, onde Moledo é mais melancólico ao fim da tarde) ou à loja de jornais onde me abasteço de vício e maledicência. Comparado com esta misantropia, só a tortura ultramontana da Tia Benedita, que via o espírito de Afonso Costa pairar sobre a Pátria, para esmagar as igrejas e matar à fome o Príncipe proscrito. Tentei várias vezes convencê-la de que o senhor Dom Miguel tinha morrido na Alemanha, junto da Princesa Adelaide, muito antes da República. Ela não acreditava. Também tenho saudades dela.
in Domingo - Correio da Manhã - 20 Julho 2008
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