A doença do Verão
A minha principal doença do Verão é a da memória. O eremitério de Moledo reencontra periodicamente a sua função social, que é a de receber vagas de hóspedes ruidosos que bivacam pela casa fora, amontoando jornais, roupa, telemóveis e sapatos. Sou mais tolerante em relação a estas coisas durante os meses de Verão – como se a desordem que atinge Moledo me trouxesse um halo de oxigénio que purifica os estigmas da idade.
O leitor sabe – já o informei a tempo – que não sou dado a melancolias outonais e que me desagradam os excessos e arroubos daquela poesia portuguesa, melancólica e fúnebre, sobre as folhas que caem e as ruínas do tempo. O velho doutor Homem, meu pai, considerava que o exemplo mais fatal para o vício poético português era considerar-se o 'génio' – para si inexistente – do poeta de "Folhas Caídas". É certo que ele prolongava o ressentimento da família para com a geração de Almeida Garrett (a quem ele tratava por Leitão da Silva, seu verdadeiro nome), mas tinha alguma razão de ser.
A minha verdadeira melancolia é a de Verão. Mesmo nesses anos em que não havia praia (e apenas 'época balnear'), nos anos trinta e quarenta, Dona Ester, minha mãe, achava que devíamos bronzear-nos como pequenos selvagens do Mediterrâneo, como se a palidez do próprio país a incomodasse. Ela depositava-nos no areal e vigiava o mar. Era o seu momento, digamos, contemplativo.
Verão a Verão, ao longo dos anos, tenho seguido a ordem de Dona Ester – e justifico com 'a necessidade do iodo' (esse raríssimo elemento químico, flutuante e regional) as minhas caminhadas até à praia, onde leio os jornais e observo a chegada dos sobreviventes que, ano após ano, regressam às águas frias do Minho. Habituados a essa inclemência – e às 'neblinas matinais', a grande metáfora literária da meteorologia minhota –, os meus sobrinhos e os seus filhos juntam-se à tradição familiar e ocupam o toldo alugado à época. Esse ritual é um elemento fundamental para a conservação da espécie. Olhando para esse retrato de grupo, uma melodia nostálgica e tranquilizadora vem ter comigo a essas horas de preguiça, obrigando-me a recordar o tempo em que a vida não tinha fim à vista. E, embalado pela recordação, chego a pensar que todos fomos felizes, algum dia, alguma vez.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 Julho 2008
O leitor sabe – já o informei a tempo – que não sou dado a melancolias outonais e que me desagradam os excessos e arroubos daquela poesia portuguesa, melancólica e fúnebre, sobre as folhas que caem e as ruínas do tempo. O velho doutor Homem, meu pai, considerava que o exemplo mais fatal para o vício poético português era considerar-se o 'génio' – para si inexistente – do poeta de "Folhas Caídas". É certo que ele prolongava o ressentimento da família para com a geração de Almeida Garrett (a quem ele tratava por Leitão da Silva, seu verdadeiro nome), mas tinha alguma razão de ser.
A minha verdadeira melancolia é a de Verão. Mesmo nesses anos em que não havia praia (e apenas 'época balnear'), nos anos trinta e quarenta, Dona Ester, minha mãe, achava que devíamos bronzear-nos como pequenos selvagens do Mediterrâneo, como se a palidez do próprio país a incomodasse. Ela depositava-nos no areal e vigiava o mar. Era o seu momento, digamos, contemplativo.
Verão a Verão, ao longo dos anos, tenho seguido a ordem de Dona Ester – e justifico com 'a necessidade do iodo' (esse raríssimo elemento químico, flutuante e regional) as minhas caminhadas até à praia, onde leio os jornais e observo a chegada dos sobreviventes que, ano após ano, regressam às águas frias do Minho. Habituados a essa inclemência – e às 'neblinas matinais', a grande metáfora literária da meteorologia minhota –, os meus sobrinhos e os seus filhos juntam-se à tradição familiar e ocupam o toldo alugado à época. Esse ritual é um elemento fundamental para a conservação da espécie. Olhando para esse retrato de grupo, uma melodia nostálgica e tranquilizadora vem ter comigo a essas horas de preguiça, obrigando-me a recordar o tempo em que a vida não tinha fim à vista. E, embalado pela recordação, chego a pensar que todos fomos felizes, algum dia, alguma vez.
in Domingo - Correio da Manhã - 13 Julho 2008
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