Os perigos principais
O velho Doutor Homem, meu pai, achava que as novas gerações estavam ameaçadas pela má literatura, pela eternidade e pela abundância. A abundância tornava-as menos humildes, a eternidade prolongava-lhes a preguiça e a má literatura impedia-as de reconhecerem a beleza, se a vissem. Ainda hoje não sei onde um advogado quase anónimo, especialista em direito bancário, foi buscar essa trilogia, mas reconheço-lhe alguma fiabilidade.
Nós éramos, convenientemente, gente remediada. Habituados há muito a terem uma profissão e a acordarem cedo, os Homem conheceram sobretudo a riqueza dos outros mas nunca se queixaram para além do aceitável. Dona Ester, minha mãe, foi a primeira mulher da família a ter um carro – mas isso não se devia à abundância e sim a uma certa vontade de chocar as burguesias moderadas do Porto. O facto em si tinha algum charme e não deixava de ser imoral; a Tia Benedita, garantia do ultramontanismo familiar, nunca achou bem, mas sentiu-se em segurança quando foi, de boleia, visitar uns primos dos Arcos – e viu nisso uma vantagem a usar com parcimónia. Essa mediania de costumes e de recursos nunca nos permitiu voar mais além do que o permitido, mas, como nos habituámos a considerar os limites com uma certa largueza, conhecemos dentro de portas o sabor da aventura – que era ligeiramente salgado e atrevido. Assim o julgava o meu Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, cuja derradeira e mais conhecida paixão, o levou às margens do Cáspio. Só na literatura a nossa vaidade se excedeu, apesar da vigilância familiar – coube-me a função de bibliotecário-geral, uma espécie de almoxarife das bibliografias, encarregado de distribuir títulos e exemplos para toda a família.
Vejo hoje, com curiosidade, que o meu pai não incluía nem o haxixe nem o bolchevismo entre os perigos que assolariam as novas gerações. Os meus sobrinhos explicam-me, com avareza de meios e argumentos, mas com uma certa bonomia, que há coisas piores. Quando todos eram adolescentes, dedicavam-se a períodos contemplativos nos pinhais vizinhos (eu ignorava o facto, mas conhecia-o), procedendo ao que já designei como "cerimónias rituais" para fumar haxixe – e sobreviveram. Já quanto ao bolchevismo, estávamos protegidos pelos maus hábitos da liberdade. Só a Tia Benedita via nele uma ameaça, tão perigosa como a República e o dr. Afonso Costa.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Junho 2008
Nós éramos, convenientemente, gente remediada. Habituados há muito a terem uma profissão e a acordarem cedo, os Homem conheceram sobretudo a riqueza dos outros mas nunca se queixaram para além do aceitável. Dona Ester, minha mãe, foi a primeira mulher da família a ter um carro – mas isso não se devia à abundância e sim a uma certa vontade de chocar as burguesias moderadas do Porto. O facto em si tinha algum charme e não deixava de ser imoral; a Tia Benedita, garantia do ultramontanismo familiar, nunca achou bem, mas sentiu-se em segurança quando foi, de boleia, visitar uns primos dos Arcos – e viu nisso uma vantagem a usar com parcimónia. Essa mediania de costumes e de recursos nunca nos permitiu voar mais além do que o permitido, mas, como nos habituámos a considerar os limites com uma certa largueza, conhecemos dentro de portas o sabor da aventura – que era ligeiramente salgado e atrevido. Assim o julgava o meu Tio Alberto, o bibliómano de São Pedro dos Arcos, cuja derradeira e mais conhecida paixão, o levou às margens do Cáspio. Só na literatura a nossa vaidade se excedeu, apesar da vigilância familiar – coube-me a função de bibliotecário-geral, uma espécie de almoxarife das bibliografias, encarregado de distribuir títulos e exemplos para toda a família.
Vejo hoje, com curiosidade, que o meu pai não incluía nem o haxixe nem o bolchevismo entre os perigos que assolariam as novas gerações. Os meus sobrinhos explicam-me, com avareza de meios e argumentos, mas com uma certa bonomia, que há coisas piores. Quando todos eram adolescentes, dedicavam-se a períodos contemplativos nos pinhais vizinhos (eu ignorava o facto, mas conhecia-o), procedendo ao que já designei como "cerimónias rituais" para fumar haxixe – e sobreviveram. Já quanto ao bolchevismo, estávamos protegidos pelos maus hábitos da liberdade. Só a Tia Benedita via nele uma ameaça, tão perigosa como a República e o dr. Afonso Costa.
in Domingo - Correio da Manhã - 22 Junho 2008
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