O verão de antigamente
O velho Doutor Homem, meu pai, apreciava o Verão como uma espécie de interregno nos negócios terrenos – essa paragem, só o soubemos mais tarde, não o comovia nem o entusiasmava. Era apenas o regresso a um estado de adolescência febril que ele mascarava com a tradicional bonomia dos dias de romaria estival, quando uma sinfonia de bandas de música, altifalantes roufenhos e o esvoaçar dos melros, vinha parar ao pátio do casarão de Ponte de Lima.
Por mais que o mundo se transforme, por mais que o Verão se transforme nesta espécie de euforia turística em que a democracia o vestiu, essas temporadas de Ponte de Lima transportam consigo uma neblina de nostalgia que me lembram as férias de outrora. O velho Doutor Homem, meu pai, não escondia que pertencíamos à classe privilegiada e que Ponte de Lima, com as suas sestas, as noites de bridge e Porto Tawny, só eram possíveis porque o mundo era como era. Ele não assistiu à popularização das férias no Algarve e nas Caraíbas, nem à transformação do mundo exótico do Oriente, ou do Brasil, numa espécie de terreiro para as burguesias nacionais gastarem as suas economias. Dona Ester, minha mãe, limitava-se a sugerir que os rapazes deviam ganhar bronzeado durante o Verão – ela, a primeira mulher da família a dirigir um carro, despejava-nos em bando nos areais de Afife na esperança de nos ver adquirir essa beleza natural que as praias do Minho forneciam em abundância, juntamente com o iodo, a poeira e o conhecimento do perigo, representado pelas marés altas.
Pelo contrário, a temporada de Ponte de Lima era o período dedicado a resistir ao mundo inteiro. A minha sobrinha Maria Luísa sente a nostalgia dessa tranquilidade sem a ter vivido realmente, porque as novas gerações desconhecem a preguiça vivida como um imperativo. Há três quartos de século, a nossa casa de Ponte de Lima era o poiso certo da família – boémios do Porto que estacionavam o carro à entrada, primos galegos que vinham praticar o "português gastronómico", tios com apetite e bibliografia, e até meninas casadoiras que vinham tentar a sua oportunidade. O velho retrato do Senhor Dom Miguel, ao fundo do corredor, irradiava uma luz triste, de final dos tempos. O velho Doutor Homem, meu pai, passava por ele e seguia para a biblioteca, onde ouvia os discos de Anna Moffo, a soprano do seu coração.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Junho 2008
Por mais que o mundo se transforme, por mais que o Verão se transforme nesta espécie de euforia turística em que a democracia o vestiu, essas temporadas de Ponte de Lima transportam consigo uma neblina de nostalgia que me lembram as férias de outrora. O velho Doutor Homem, meu pai, não escondia que pertencíamos à classe privilegiada e que Ponte de Lima, com as suas sestas, as noites de bridge e Porto Tawny, só eram possíveis porque o mundo era como era. Ele não assistiu à popularização das férias no Algarve e nas Caraíbas, nem à transformação do mundo exótico do Oriente, ou do Brasil, numa espécie de terreiro para as burguesias nacionais gastarem as suas economias. Dona Ester, minha mãe, limitava-se a sugerir que os rapazes deviam ganhar bronzeado durante o Verão – ela, a primeira mulher da família a dirigir um carro, despejava-nos em bando nos areais de Afife na esperança de nos ver adquirir essa beleza natural que as praias do Minho forneciam em abundância, juntamente com o iodo, a poeira e o conhecimento do perigo, representado pelas marés altas.
Pelo contrário, a temporada de Ponte de Lima era o período dedicado a resistir ao mundo inteiro. A minha sobrinha Maria Luísa sente a nostalgia dessa tranquilidade sem a ter vivido realmente, porque as novas gerações desconhecem a preguiça vivida como um imperativo. Há três quartos de século, a nossa casa de Ponte de Lima era o poiso certo da família – boémios do Porto que estacionavam o carro à entrada, primos galegos que vinham praticar o "português gastronómico", tios com apetite e bibliografia, e até meninas casadoiras que vinham tentar a sua oportunidade. O velho retrato do Senhor Dom Miguel, ao fundo do corredor, irradiava uma luz triste, de final dos tempos. O velho Doutor Homem, meu pai, passava por ele e seguia para a biblioteca, onde ouvia os discos de Anna Moffo, a soprano do seu coração.
in Domingo - Correio da Manhã - 15 Junho 2008
<< Home