Coisas adiadas
Estamos a ser muito requisitados do lado de lá. O aviso, triste e sincero, foi dado pelo velho Doutor Homem, meu pai, quando o Tio Alberto, o bibliómano e gastrónomo de São Pedro de Arcos, morreu a meio da Primavera. Diante daquele vazio preenchido pela biblioteca – uma intromissão cosmopolita na paisagem rural e na decoração sóbria e masculina de uma casa de celibatário – a meditação tinha toda a razão de ser, profunda e cava como uma despedida de romance.
Ao fechar a porta de São Pedro de Arcos – lembro bem os seus gestos –, deixando para trás um mundo onde as recordações estavam condenadas à erosão e aos restos de pólen, o velho Doutor Homem relembrava momentos da vida do seu irmão, enriquecida com peregrinações por todos os lugares onde as suas paixões o tinham requisitado. Tenho, hoje, pena de não ter conhecido a sua prometida noiva russa, ou persa, a quem ele sobreviveu dois anos. Recordo-o mais intensamente nestes dias como um aventureiro romântico, um cavaleiro de Alexandre Dumas partindo pela noite fora procurando um destino e nunca para fugir à sua solidão.
A Tia Benedita, cautelosa, não partilhava desta admiração. Consolava-a o facto de ele regressar, mas a história da princesa russa, ou persa, afligia-a por julgá-la contaminada pela desgraça. Convém esclarecer que a historiografia familiar tem grandes dúvidas sobre a sua origem, nas margens do Cáspio, onde o Tio Alberto colheu o pecado do caviar. Apenas se garante a sua existência. A partir de certa altura habituamo-nos a ser requisitados do lado de lá. A vida está cheia de histórias incompletas, de vidas por preencher e desta melancolia arrastada pela poeira da Primavera. Em tempos difíceis resignamo-nos e convencemo-nos de que estamos em viagem.
Nestas ocasiões a minha sobrinha Maria Luísa traz-me algum conforto. Ela, que vive em Braga e cuida da existência dos ricos (providenciando-lhes gosto doméstico e contas para pagar), vem passar os fins-de-semana a Moledo. Há cinquenta anos, provavelmente, eu teria vivido enfeitiçado por uma jovem mulher que se sentasse na varanda, fumando o seu cigarro, e comentando literatura de outros séculos. Como a memória nos ensina, chegamos sempre atrasados ao lugar onde a vida teria começado. Mas esse é um assunto que deixo para a próxima semana. Adiar é a única coisa que faço razoavelmente.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 Junho 2008
Ao fechar a porta de São Pedro de Arcos – lembro bem os seus gestos –, deixando para trás um mundo onde as recordações estavam condenadas à erosão e aos restos de pólen, o velho Doutor Homem relembrava momentos da vida do seu irmão, enriquecida com peregrinações por todos os lugares onde as suas paixões o tinham requisitado. Tenho, hoje, pena de não ter conhecido a sua prometida noiva russa, ou persa, a quem ele sobreviveu dois anos. Recordo-o mais intensamente nestes dias como um aventureiro romântico, um cavaleiro de Alexandre Dumas partindo pela noite fora procurando um destino e nunca para fugir à sua solidão.
A Tia Benedita, cautelosa, não partilhava desta admiração. Consolava-a o facto de ele regressar, mas a história da princesa russa, ou persa, afligia-a por julgá-la contaminada pela desgraça. Convém esclarecer que a historiografia familiar tem grandes dúvidas sobre a sua origem, nas margens do Cáspio, onde o Tio Alberto colheu o pecado do caviar. Apenas se garante a sua existência. A partir de certa altura habituamo-nos a ser requisitados do lado de lá. A vida está cheia de histórias incompletas, de vidas por preencher e desta melancolia arrastada pela poeira da Primavera. Em tempos difíceis resignamo-nos e convencemo-nos de que estamos em viagem.
Nestas ocasiões a minha sobrinha Maria Luísa traz-me algum conforto. Ela, que vive em Braga e cuida da existência dos ricos (providenciando-lhes gosto doméstico e contas para pagar), vem passar os fins-de-semana a Moledo. Há cinquenta anos, provavelmente, eu teria vivido enfeitiçado por uma jovem mulher que se sentasse na varanda, fumando o seu cigarro, e comentando literatura de outros séculos. Como a memória nos ensina, chegamos sempre atrasados ao lugar onde a vida teria começado. Mas esse é um assunto que deixo para a próxima semana. Adiar é a única coisa que faço razoavelmente.
in Domingo - Correio da Manhã - 1 Junho 2008
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