Um passo para a serenidade
Releio sem tristeza os livros da minha idade adulta e refaço os mapas e as impressões dessa época – a sua meteorologia, os nomes das pessoas, o que vestiam, os automóveis que circulavam na velha estrada de Viana, os que estavam vivos. Um vasto volume de fotografias passa pela minha memória, a sépia, transitando como as estações do ano de antigamente.
Refiro o pormenor porque as estações do ano eram um valor da época. O velho Doutor Homem, meu pai, caracterizava o clima português como um fidalgo sóbrio e elegante, vestido de fatos de meia-estação, indeciso sobre o calor ou a vinda das chuvas. Ele, que fora um dos dândis da Foz portuense, talhado de acordo com os modelos de 'tweed' que trouxe da Inglaterra de antes da Guerra (a Segunda, para onde fora enviado com a finalidade de aprender inglês e de adquirir alguns rudimentos de civilização), nunca abandonou o seu amável alfaiate dos Clérigos. O meu avô só conhecia os ingleses do Douro, que ele achava uma raça amistosa mas interesseira, muito ciosos da sua contabilidade e orgulhosos por pertencerem a linhagens de comerciantes que tinham pago o suficiente pelo seu lugar.
Nós sabíamos quando o Outono chegava realmente: o meu avô regressava à Estação de São Bento afogueado e temperado pelo pó, pelo xisto dos vales e por essa amável sensação – a um passo da serenidade – de quem tinha cumprido o dever. O seu papel de administrador de quintas inglesas no Douro aproximava-o do lado generoso da vida rural: recolher proventos, assinalar o começo das vindimas e as entradas e saídas dos lagares.
Já a Primavera era assinalada de outra maneira - com o almoço de Páscoa e a chegada das giestas de flor amarela nas estradas do Minho. A explosão de 'Cytisus striatus' era o sinal mais evidente de que a estação do ano tinha mudado. Nunca o compreendi até ver o amor dedicado que lhes dispensava o meu Tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro dos Arcos, um conhecedor das serranias de Lanhoso tanto como do mais raro caviar das margens do Cáspio.
Neste ano a Primavera teima em escapar ao rigor dos horários. Vem uma chuva, um vento, uma pequena memória de Inverno. A minha sobrinha, moderna e esclarecida, votante no Bloco de Esquerda, aponta o dedo ao "aquecimento global". Para não gastar tempo com discussões, limito-me a concordar, agasalhando-me por causa do frio.
in Domingo – Correio da Manhã – 25 Maio 2008
Refiro o pormenor porque as estações do ano eram um valor da época. O velho Doutor Homem, meu pai, caracterizava o clima português como um fidalgo sóbrio e elegante, vestido de fatos de meia-estação, indeciso sobre o calor ou a vinda das chuvas. Ele, que fora um dos dândis da Foz portuense, talhado de acordo com os modelos de 'tweed' que trouxe da Inglaterra de antes da Guerra (a Segunda, para onde fora enviado com a finalidade de aprender inglês e de adquirir alguns rudimentos de civilização), nunca abandonou o seu amável alfaiate dos Clérigos. O meu avô só conhecia os ingleses do Douro, que ele achava uma raça amistosa mas interesseira, muito ciosos da sua contabilidade e orgulhosos por pertencerem a linhagens de comerciantes que tinham pago o suficiente pelo seu lugar.
Nós sabíamos quando o Outono chegava realmente: o meu avô regressava à Estação de São Bento afogueado e temperado pelo pó, pelo xisto dos vales e por essa amável sensação – a um passo da serenidade – de quem tinha cumprido o dever. O seu papel de administrador de quintas inglesas no Douro aproximava-o do lado generoso da vida rural: recolher proventos, assinalar o começo das vindimas e as entradas e saídas dos lagares.
Já a Primavera era assinalada de outra maneira - com o almoço de Páscoa e a chegada das giestas de flor amarela nas estradas do Minho. A explosão de 'Cytisus striatus' era o sinal mais evidente de que a estação do ano tinha mudado. Nunca o compreendi até ver o amor dedicado que lhes dispensava o meu Tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro dos Arcos, um conhecedor das serranias de Lanhoso tanto como do mais raro caviar das margens do Cáspio.
Neste ano a Primavera teima em escapar ao rigor dos horários. Vem uma chuva, um vento, uma pequena memória de Inverno. A minha sobrinha, moderna e esclarecida, votante no Bloco de Esquerda, aponta o dedo ao "aquecimento global". Para não gastar tempo com discussões, limito-me a concordar, agasalhando-me por causa do frio.
in Domingo – Correio da Manhã – 25 Maio 2008
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