domingo, maio 25, 2008

Um passo para a serenidade

Releio sem tristeza os livros da minha idade adulta e refaço os mapas e as impressões dessa época – a sua meteorologia, os nomes das pessoas, o que ves­tiam, os automóveis que circula­vam na velha estrada de Viana, os que estavam vivos. Um vasto volume de fotografias passa pela minha memória, a sépia, transi­tando como as estações do ano de antigamente.

Refiro o pormenor porque as estações do ano eram um valor da época. O velho Doutor Ho­mem, meu pai, caracterizava o clima português como um fidal­go sóbrio e elegante, vestido de fatos de meia-estação, indeciso sobre o calor ou a vinda das chuvas. Ele, que fora um dos dândis da Foz portuense, talhado de acordo com os modelos de 'tweed' que trouxe da Inglaterra de antes da Guerra (a Segunda, para onde fora enviado com a fi­nalidade de aprender inglês e de adquirir alguns rudimentos de civilização), nunca abandonou o seu amável alfaiate dos Clérigos. O meu avô só conhecia os ingle­ses do Douro, que ele achava uma raça amistosa mas interes­seira, muito ciosos da sua conta­bilidade e orgulhosos por perten­cerem a linhagens de comercian­tes que tinham pago o suficiente pelo seu lugar.

Nós sabíamos quando o Outo­no chegava realmente: o meu avô regressava à Estação de São Ben­to afogueado e temperado pelo pó, pelo xisto dos vales e por essa amável sensação – a um passo da serenidade – de quem tinha cum­prido o dever. O seu papel de ad­ministrador de quintas inglesas no Douro aproximava-o do lado generoso da vida rural: recolher proventos, assinalar o começo das vindimas e as entradas e saí­das dos lagares.

Já a Primavera era assinalada de outra maneira - com o almo­ço de Páscoa e a chegada das giestas de flor amarela nas estra­das do Minho. A explosão de 'Cytisus striatus' era o sinal mais evidente de que a estação do ano tinha mudado. Nunca o com­preendi até ver o amor dedica­do que lhes dispensava o meu Tio Alberto, o bibliófilo e gastrónomo de São Pedro dos Ar­cos, um conhecedor das ser­ranias de Lanhoso tanto como do mais raro caviar das mar­gens do Cáspio.

Neste ano a Primavera tei­ma em escapar ao rigor dos horários. Vem uma chuva, um vento, uma pequena memória de Inverno. A mi­nha sobrinha, moderna e esclarecida, votante no Bloco de Esquerda, apon­ta o dedo ao "aquecimen­to global". Para não gas­tar tempo com discus­sões, limito-me a con­cordar, agasalhando-me por causa do frio.

in Domingo – Correio da Manhã – 25 Maio 2008