O Brasil de então (2)
A Tia Benedita, matriarca da família e guardiã do miguelismo no velho casarão de Ponte de Lima, pensava que o Brasil era o reino da lascívia e nunca desculpou ao Tio Alfredo Augusto o facto de se ter recusado, durante muitos anos, a abandonar o Pernambuco para regressar ao Minho – só o fez depois de a Tia Benedita ter morrido, mas não havia ligação entre uma coisa e outra.
No final da década de sessenta o Brasil terminava para nós, mais de cem anos depois de o futuro Imperador ter atravessado o rio Ipiranga. Já nesse quadro histórico havia um pouco da encenação em que o Brasil tão bem se exprime – o retrato de um caudilho de donos de escravos e plantadores de cana-de-açúcar montando um improvável alazão e pronunciando a frase que todos os caudilhos sul-americanos repetiram, mas entoando-a como se fossem os seus criadores: “Independência ou morte.” Escrevo-a sem o respectivo ponto de exclamação – para não acordar o leitor. Com o regresso do Tio Alfredo Augusto, que foi morar para Afife como um brasileiro dos romances de Camilo refugiado em Prazins, encerrava-se o ciclo das aventuras coloniais da família. Uns anos depois, quando as províncias africanas decretavam a independência, o velho Doutor Homem, meu pai, limitou-se a comentar que tudo isso já estava escrito desde que D. Pedro atravessara o longínquo regato: “O senhor D. Pedro já começou o trabalho há muito, no Ipiranga.”
Pensando bem, nós nunca perdoámos ao Brasil ter-se separado da Pátria sem dar explicações satisfatórias. Nunca lhe perdoámos o sotaque nem a devassidão notória. Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendimento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual “uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado independente”. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regressaram ao poder em 1974.
in Domingo – Correio da Manhã – 20 Abril 2008
No final da década de sessenta o Brasil terminava para nós, mais de cem anos depois de o futuro Imperador ter atravessado o rio Ipiranga. Já nesse quadro histórico havia um pouco da encenação em que o Brasil tão bem se exprime – o retrato de um caudilho de donos de escravos e plantadores de cana-de-açúcar montando um improvável alazão e pronunciando a frase que todos os caudilhos sul-americanos repetiram, mas entoando-a como se fossem os seus criadores: “Independência ou morte.” Escrevo-a sem o respectivo ponto de exclamação – para não acordar o leitor. Com o regresso do Tio Alfredo Augusto, que foi morar para Afife como um brasileiro dos romances de Camilo refugiado em Prazins, encerrava-se o ciclo das aventuras coloniais da família. Uns anos depois, quando as províncias africanas decretavam a independência, o velho Doutor Homem, meu pai, limitou-se a comentar que tudo isso já estava escrito desde que D. Pedro atravessara o longínquo regato: “O senhor D. Pedro já começou o trabalho há muito, no Ipiranga.”
Pensando bem, nós nunca perdoámos ao Brasil ter-se separado da Pátria sem dar explicações satisfatórias. Nunca lhe perdoámos o sotaque nem a devassidão notória. Nós, que éramos conservadores, que mantínhamos velhos hábitos (e fazíamos disso questão) e que guardávamos os retratos dos antepassados, nunca compreendemos com grandeza e desprendimento a sugestão de Benjamin Disraeli, retirada de um dos seus famosos discursos nos Comuns, segundo a qual “uma colónia não deixa de ser colónia só pelo simples facto de se ter tornado independente”. Não o vimos na época; não poderíamos tê-lo visto depois, quando os militares, que tomaram o país em 1926, regressaram ao poder em 1974.
in Domingo – Correio da Manhã – 20 Abril 2008
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