O Brasil de então (1)
O Brasil de Kubitschek foi um ídolo da minha idade madura. Foi nesses anos de prata – quando se construía Brasília no planalto – que visitei o Brasil a conselho do meu pai e a pedido da minha mãe. Do grande país apenas senti o aroma de Copacabana e da velha capital (era então capital) que rescendia ainda a portugueses da Cinelândia. Falava-se na época um português primoroso, não como o de Ruy Lacerda ou Roberto Campos (aconselho o leitor a verificar, com o manuseamento de “A Lanterna na Popa”, seu livro de memórias), mas aquele português cordial e carioca, que vinha de Machado de Assis, o nosso último representante nos trópicos.
As minhas razões eram sentimentais. Dona Ester, minha mãe, recomendou-me o Brasil porque o Tamariz desse Verão não tinha sido suficiente para afastar todas as nuvens que sobraram da tempestade. A tempestade era sentimental – “um amor descuidado”, como murmurou o Tio Alberto, bibliógrafo de São Pedro dos Arcos e gastrónomo de Paredes de Coura, além de aventureiro oficial da família. Digamos que o Brasil foi a minha ida à farmácia: eu iria curar-me. Curei-me. A Copacabana de então (fiquei alojado no velho Hotel Glória, no Flamengo, porque pertencia à classe dos advogados de família) foi o perfume que me distraiu da viagem, que foi longa, e dos desaires, que foram ligeiros – vistos a esta distância. A minha correspondência da época, familiar, discreta e cordata, registou uns trópicos amenos que, mesmo assim, não descansaram a Tia Benedita. Ela via no Brasil a antecâmara da devassidão e da lascívia. O velho Doutor Homem, meu pai, garantia que o dr. Salazar decerto sentiria a mesma apreensão quando enviava cônsules e embaixadores para o Brasil, temendo que cedessem vilmente à tentação da carne.
Nesses meses do Rio de Janeiro compreendi que a vida tinha uma leveza que não era conhecida dos meus conterrâneos. Eu próprio não a entendi logo porque não tinha palavras para a traduzir no nosso idioma, tão sensato e cheio de orações conjuntivas. Nunca voltei a sentir nem aquela leveza nem a ventura de estar de passagem. Todo o resto da minha vida se concluiu preso à raiz de sempre: uma casa, uma biblioteca, uma família. Nunca houve acordo ortográfico que me salvasse dessa nostalgia.
in Domingo – Correio da Manhã – 13 Abril 2008
As minhas razões eram sentimentais. Dona Ester, minha mãe, recomendou-me o Brasil porque o Tamariz desse Verão não tinha sido suficiente para afastar todas as nuvens que sobraram da tempestade. A tempestade era sentimental – “um amor descuidado”, como murmurou o Tio Alberto, bibliógrafo de São Pedro dos Arcos e gastrónomo de Paredes de Coura, além de aventureiro oficial da família. Digamos que o Brasil foi a minha ida à farmácia: eu iria curar-me. Curei-me. A Copacabana de então (fiquei alojado no velho Hotel Glória, no Flamengo, porque pertencia à classe dos advogados de família) foi o perfume que me distraiu da viagem, que foi longa, e dos desaires, que foram ligeiros – vistos a esta distância. A minha correspondência da época, familiar, discreta e cordata, registou uns trópicos amenos que, mesmo assim, não descansaram a Tia Benedita. Ela via no Brasil a antecâmara da devassidão e da lascívia. O velho Doutor Homem, meu pai, garantia que o dr. Salazar decerto sentiria a mesma apreensão quando enviava cônsules e embaixadores para o Brasil, temendo que cedessem vilmente à tentação da carne.
Nesses meses do Rio de Janeiro compreendi que a vida tinha uma leveza que não era conhecida dos meus conterrâneos. Eu próprio não a entendi logo porque não tinha palavras para a traduzir no nosso idioma, tão sensato e cheio de orações conjuntivas. Nunca voltei a sentir nem aquela leveza nem a ventura de estar de passagem. Todo o resto da minha vida se concluiu preso à raiz de sempre: uma casa, uma biblioteca, uma família. Nunca houve acordo ortográfico que me salvasse dessa nostalgia.
in Domingo – Correio da Manhã – 13 Abril 2008
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