Por causa da gastronomia
Poucas vezes, nas minhas memórias, mencionei a Tia Julieta. Salvo erro, apenas uma, mais para elogiar-lhe os dotes culinários do que para festejar o seu estoicismo. Ora, apesar de tudo ela era estóica. Viúva aos quarenta, exactamente como as viúvas dos romances do século XIX, foi a partir dessa data que iniciou uma peregrinação pelos segredos da grande gastronomia da província. Essa actividade reservou-lhe a simpatia e a eterna gratidão dos nossos corações, que são egoístas e fáceis, mas despertou o ciúme entre as senhoras da família. Uma viúva na cozinha tanto abre as portas para a tempestade da inveja feminina – como suscita labaredas de paixão nos homens.
A Tia Julieta ficou entre nós até ao final dos anos oitenta, envelhecendo suavemente e sem necessidade de dieta para manter uma elegância adorável. O Tio Alberto, o outro gastrónomo da família (ficou conhecido por, na sua casa de São Pedro de Arcos, receber Camilo José Cela com um almoço de sardinhas fritas e ovos com chouriço), achava-a condenada à eternidade como recompensa pelo arroz de pato que assinalava o período final da Quaresma, e pela sua receita de pescada dourada que tentou obter – sem sucesso – durante toda uma vida de espionagem culinária.
Há personagens que se transfiguram na nossa memória pelo prazer que obrigam a recordar. Hoje em dia, é um perigo; no caso da Tia Julieta, o problema eram os colesteróis magníficos e proibidos, ou os pratos que vinham inquietar aquela parte menos habilidosa e criativa da família.
A minha sobrinha Maria Luísa é a mais ousada das gastrónomas actuais dentro de portas. Atribuo o facto a alguns anos de estômago dilacerado pela informalidade esquerdista, o que a leva a procurar recompensa na mesa (mais do que na cozinha) e na evocação dos grandes banquetes em que os Homem de antigamente participaram, como cozinheiros ou na qualidade de comensais. A ex-marxista considera a insinuação de mau gosto, mas, felizmente, não lhe vejo sinais de se alimentar com frugalidade. Para a amargurar, lembro-lhe que o seu pai (meu irmão) ia perdendo o 25 de Abril por causa de uma caldeirada de cabrito que estava aprazada para Pontevedra. Quando deram por ele estava a instalar-se no carro, o que seria a primeira fuga para Espanha em tempos de revolução. Mesmo sem saber.
in Domingo - Correio da Manhã - 24.02.2008
A Tia Julieta ficou entre nós até ao final dos anos oitenta, envelhecendo suavemente e sem necessidade de dieta para manter uma elegância adorável. O Tio Alberto, o outro gastrónomo da família (ficou conhecido por, na sua casa de São Pedro de Arcos, receber Camilo José Cela com um almoço de sardinhas fritas e ovos com chouriço), achava-a condenada à eternidade como recompensa pelo arroz de pato que assinalava o período final da Quaresma, e pela sua receita de pescada dourada que tentou obter – sem sucesso – durante toda uma vida de espionagem culinária.
Há personagens que se transfiguram na nossa memória pelo prazer que obrigam a recordar. Hoje em dia, é um perigo; no caso da Tia Julieta, o problema eram os colesteróis magníficos e proibidos, ou os pratos que vinham inquietar aquela parte menos habilidosa e criativa da família.
A minha sobrinha Maria Luísa é a mais ousada das gastrónomas actuais dentro de portas. Atribuo o facto a alguns anos de estômago dilacerado pela informalidade esquerdista, o que a leva a procurar recompensa na mesa (mais do que na cozinha) e na evocação dos grandes banquetes em que os Homem de antigamente participaram, como cozinheiros ou na qualidade de comensais. A ex-marxista considera a insinuação de mau gosto, mas, felizmente, não lhe vejo sinais de se alimentar com frugalidade. Para a amargurar, lembro-lhe que o seu pai (meu irmão) ia perdendo o 25 de Abril por causa de uma caldeirada de cabrito que estava aprazada para Pontevedra. Quando deram por ele estava a instalar-se no carro, o que seria a primeira fuga para Espanha em tempos de revolução. Mesmo sem saber.
in Domingo - Correio da Manhã - 24.02.2008
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