domingo, março 02, 2008

Elogio da velha caligrafia

O velho Doutor Homem, meu pai, oferecia-nos uma cane­ta por cada exame mais ou me­nos importante, da escola primá­ria à universidade, com o argumento de que assim recordaría­mos melhor a etapa ultrapassa­da com sucesso. Não percebo como nunca se colocou o proble­ma de uma reprovação mas, a esta distância, compreendo que a grandeza e a confiança do 'pater familias' não ousava perder a sua aposta com o destino - ele li­mitava-se a confiar como se não admitisse ser desiludido.

As canetas sempre ocuparam o meu universo de recordações e de objectos pessoais. Tempos houve, na chamada "idade ma­dura", em que cultivei, episodi­camente, a estultícia de fazer "uma colecção". O coleccionador é uma alma absurda, uma espé­cie cada vez mais rara de pessoa abnegada, capaz de quase tudo para acrescentar mais um objec­to à sua colecção, não se limitan­do a reunir o que acaso empres­tou à sua passagem. Preenchi al­guns estojos com canetas de vá­rias qualidades e origens, mantendo o princípio de que há uma diferença entre uma caneta - o objecto que serve para escrever e apurar a caligrafia - e um ob­jecto de ourivesaria, pouco pró­prio para usar e que é apenas ali­mento da vaidade dos medíocres.

Olho-as hoje com aquela nostal­gia sem amargura que a velhice proporciona: cada uma delas corresponde à montra de uma loja onde foi vista ou cobiçada pela primeira vez. Cada uma de­las tinha um traço, uma memó­ria, uma determinada resistência ao papel, e emprestava certa variação à escrita. Cada uma delas foi estreada para escrever uma carta, para assinar um documen­to, preencher uma lacuna que só ficaria satisfeita com aquele fio de tinta negra ou azul, retirada de tinteiros que, também eles, haviam de ter uma história.

Quem nunca usou uma dessas canetas não pode compreender a nobreza da caligrafia, da letra desenhada, da frase bem com­posta, nem a teimosia de uma or­tografia sem erros.

Evidentemente que a minha caneta preferida é a Parker que pertenceu ao velho Doutor Ho­mem, meu pai. Serviu para assi­nar o título de propriedade do seu primeiro escritório – foi um presente do meu avô – e, depois, o assento de casamento com a minha mãe, D. Ester. Conservo-a como um legado do tempo e da minha língua. Tem uma vida pró­pria, completa a minha, prolon­ga-a para lá das coisas breves. É uma sombra de cada coisa que escrevo.

in Domingo – Correio da Manhã – 2 Março 2008