Elogio da velha caligrafia
O velho Doutor Homem, meu pai, oferecia-nos uma caneta por cada exame mais ou menos importante, da escola primária à universidade, com o argumento de que assim recordaríamos melhor a etapa ultrapassada com sucesso. Não percebo como nunca se colocou o problema de uma reprovação mas, a esta distância, compreendo que a grandeza e a confiança do 'pater familias' não ousava perder a sua aposta com o destino - ele limitava-se a confiar como se não admitisse ser desiludido.
As canetas sempre ocuparam o meu universo de recordações e de objectos pessoais. Tempos houve, na chamada "idade madura", em que cultivei, episodicamente, a estultícia de fazer "uma colecção". O coleccionador é uma alma absurda, uma espécie cada vez mais rara de pessoa abnegada, capaz de quase tudo para acrescentar mais um objecto à sua colecção, não se limitando a reunir o que acaso emprestou à sua passagem. Preenchi alguns estojos com canetas de várias qualidades e origens, mantendo o princípio de que há uma diferença entre uma caneta - o objecto que serve para escrever e apurar a caligrafia - e um objecto de ourivesaria, pouco próprio para usar e que é apenas alimento da vaidade dos medíocres.
Olho-as hoje com aquela nostalgia sem amargura que a velhice proporciona: cada uma delas corresponde à montra de uma loja onde foi vista ou cobiçada pela primeira vez. Cada uma delas tinha um traço, uma memória, uma determinada resistência ao papel, e emprestava certa variação à escrita. Cada uma delas foi estreada para escrever uma carta, para assinar um documento, preencher uma lacuna que só ficaria satisfeita com aquele fio de tinta negra ou azul, retirada de tinteiros que, também eles, haviam de ter uma história.
Quem nunca usou uma dessas canetas não pode compreender a nobreza da caligrafia, da letra desenhada, da frase bem composta, nem a teimosia de uma ortografia sem erros.
Evidentemente que a minha caneta preferida é a Parker que pertenceu ao velho Doutor Homem, meu pai. Serviu para assinar o título de propriedade do seu primeiro escritório – foi um presente do meu avô – e, depois, o assento de casamento com a minha mãe, D. Ester. Conservo-a como um legado do tempo e da minha língua. Tem uma vida própria, completa a minha, prolonga-a para lá das coisas breves. É uma sombra de cada coisa que escrevo.
in Domingo – Correio da Manhã – 2 Março 2008
As canetas sempre ocuparam o meu universo de recordações e de objectos pessoais. Tempos houve, na chamada "idade madura", em que cultivei, episodicamente, a estultícia de fazer "uma colecção". O coleccionador é uma alma absurda, uma espécie cada vez mais rara de pessoa abnegada, capaz de quase tudo para acrescentar mais um objecto à sua colecção, não se limitando a reunir o que acaso emprestou à sua passagem. Preenchi alguns estojos com canetas de várias qualidades e origens, mantendo o princípio de que há uma diferença entre uma caneta - o objecto que serve para escrever e apurar a caligrafia - e um objecto de ourivesaria, pouco próprio para usar e que é apenas alimento da vaidade dos medíocres.
Olho-as hoje com aquela nostalgia sem amargura que a velhice proporciona: cada uma delas corresponde à montra de uma loja onde foi vista ou cobiçada pela primeira vez. Cada uma delas tinha um traço, uma memória, uma determinada resistência ao papel, e emprestava certa variação à escrita. Cada uma delas foi estreada para escrever uma carta, para assinar um documento, preencher uma lacuna que só ficaria satisfeita com aquele fio de tinta negra ou azul, retirada de tinteiros que, também eles, haviam de ter uma história.
Quem nunca usou uma dessas canetas não pode compreender a nobreza da caligrafia, da letra desenhada, da frase bem composta, nem a teimosia de uma ortografia sem erros.
Evidentemente que a minha caneta preferida é a Parker que pertenceu ao velho Doutor Homem, meu pai. Serviu para assinar o título de propriedade do seu primeiro escritório – foi um presente do meu avô – e, depois, o assento de casamento com a minha mãe, D. Ester. Conservo-a como um legado do tempo e da minha língua. Tem uma vida própria, completa a minha, prolonga-a para lá das coisas breves. É uma sombra de cada coisa que escrevo.
in Domingo – Correio da Manhã – 2 Março 2008
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