Conhecer mundo
O mundo dos velhos não oferece garantias – depreendi isto depois de completar oitenta anos, e considerando que o mundo não mudara muito desde que o velho Doutor Homem, meu pai, regressara à Pátria depois de uma temporada inglesa. Nesses anos de antes da Guerra, quando Londres ainda não tinha sido bombardeada nem a França invadida, Portugal era um país comezinho, e continuaria a sê-lo por anos e anos.
O meu pai teve a infelicidade de conhecer a Inglaterra desses anos de relativa prosperidade, o que lhe acarretou dissabores mas lhe desenvolveu a imaginação. Depois de gastar as derradeiras libras no seu guarda-roupa de ‘tweed’ (cujo corte diferia bastante do alfaiate familiar dos Clérigos, onde os Homem de duas gerações mandaram apurar as suas lãs, fazendas e cheviotes), Portugal devia parecer pequeno para quem leu os jornais da manhã antes de passear na Saville Road observando como vestiam os ingleses da City, hoje um fenómeno arqueológico. A temporada inglesa foi ordenada pelo meu avô, administrador de quintas e vinhedos no vale do Douro, que achava que um rapaz devia conhecer mundo, mesmo que os mapas não fossem além de Barca d’Alva, onde ele conheceu Guerra Junqueiro, com quem duas ou três vezes se correspondeu.
A lição ficou aprendida e, por várias vezes, com Dona Ester, minha mãe, ministrando agasalhos e o meu pai servindo-nos geografia, os Homem partiram para lá das fronteiras mal o aroma da “época balnear” atravessava os areais de Afife ou os pinhais de Viana. Para o velho Doutor Homem, meu pai, ter maneiras à mesa e ter conhecimentos de história pátria não valia de nada se não houvesse um perfume de eternidade a envolver o conjunto. Mal chegava a Primavera, desdobravam-se mapas na sala de jantar da velha casa portuense; o velho advogado acreditava que viajar era uma experiência decisiva, quer a rota nos levasse a Biarritz ou apenas servisse para mostrar as enseadas de Vigo.
A Tia Benedita, a matriarca da família, achava supérfluo o esforço. Abrigada em Ponte de Lima, no casarão onde se conservava o retrato do senhor D. Miguel, a senhora admitia que talvez houvesse diferenças, mas que a imoralidade era igual em todo o lado. Nessas alturas, o meu pai não respondia. Limitava-se a fechar os olhos, sonhador. Um devasso conhece-se pelo sorriso.
in Domingo – Revista do Correio da Manhã – 10 Fevereiro 2008
O meu pai teve a infelicidade de conhecer a Inglaterra desses anos de relativa prosperidade, o que lhe acarretou dissabores mas lhe desenvolveu a imaginação. Depois de gastar as derradeiras libras no seu guarda-roupa de ‘tweed’ (cujo corte diferia bastante do alfaiate familiar dos Clérigos, onde os Homem de duas gerações mandaram apurar as suas lãs, fazendas e cheviotes), Portugal devia parecer pequeno para quem leu os jornais da manhã antes de passear na Saville Road observando como vestiam os ingleses da City, hoje um fenómeno arqueológico. A temporada inglesa foi ordenada pelo meu avô, administrador de quintas e vinhedos no vale do Douro, que achava que um rapaz devia conhecer mundo, mesmo que os mapas não fossem além de Barca d’Alva, onde ele conheceu Guerra Junqueiro, com quem duas ou três vezes se correspondeu.
A lição ficou aprendida e, por várias vezes, com Dona Ester, minha mãe, ministrando agasalhos e o meu pai servindo-nos geografia, os Homem partiram para lá das fronteiras mal o aroma da “época balnear” atravessava os areais de Afife ou os pinhais de Viana. Para o velho Doutor Homem, meu pai, ter maneiras à mesa e ter conhecimentos de história pátria não valia de nada se não houvesse um perfume de eternidade a envolver o conjunto. Mal chegava a Primavera, desdobravam-se mapas na sala de jantar da velha casa portuense; o velho advogado acreditava que viajar era uma experiência decisiva, quer a rota nos levasse a Biarritz ou apenas servisse para mostrar as enseadas de Vigo.
A Tia Benedita, a matriarca da família, achava supérfluo o esforço. Abrigada em Ponte de Lima, no casarão onde se conservava o retrato do senhor D. Miguel, a senhora admitia que talvez houvesse diferenças, mas que a imoralidade era igual em todo o lado. Nessas alturas, o meu pai não respondia. Limitava-se a fechar os olhos, sonhador. Um devasso conhece-se pelo sorriso.
in Domingo – Revista do Correio da Manhã – 10 Fevereiro 2008
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