domingo, março 30, 2008

África, tão longe

A opinião da Tia Benedita era clara: tirando os pretinhos, que deviam ser salvos ou reconfortados com pão e catequese, não havia motivos para andarmos em África a meter-nos em trapalhadas. Ou seja, como acrescentava por vezes, "a misturar-nos". A viuvez da Tia Benedita explica grande parte da sua amargura, que não se condoía com esse espectáculo de capitães, tenentes, grandes majores, tenentes-coronéis que vinham de África e traziam malárias, febres altas, mobílias de pau preto e gravuras de cidades perdidas nos matos e planaltos.

Da casa de Ponte de Lima, onde ficava o seu país, não via necessidade de as pessoas irem buscar fama naqueles lugares onde não havia vinhas de enforcado e, em seu lugar, abundava a imoralidade e – segundo dizia – "todas essas coisas que não havia aqui".

O velho Doutor Homem, meu pai, achava uma certa lógica na opinião da matriarca da família, mas ele compreendia a profundidade daquele argumento: a questão não era a mistura racial; a questão era a tendência, repetidas vezes confirmada, que certos membros do clã tinham manifestado para, digamos, se misturarem. Para a vetusta senhora, o problema era moral, mais do que político; e era pessoal, mais do que colectivo, ou nacional.

Segundo o Tio Alberto, bibliófilo de São Pedro de Arcos, e arquivista da família, o problema teria sido a morte do Tio Henrique, que veio doente de Benguela e de Luanda uns anos depois de Alves dos Reis ser descoberto a falsificar notas do Banco de Angola. Essa dor não a abandonou nunca.

A família tem poucas ligações a África, que era um continente jovial comparado com a brutalidade dos nossos Invernos letais e frios. Ela não assistiu, como todos nós, ao regresso da pátria, em caixotes, pobre e crestada pelo sol – mas decidida a remover obstáculos e a sobreviver no meio da revolução. Os retornados foram os nossos últimos heróis, peregrinando de terra em terra até recuperarem a vida que lhes tinham interrompido. A diferença entre eles e a doença do Tio Henrique, que havia de lhe ser fatal, era a diferença entre a fraqueza e a vontade dos portugueses espalhados pelo mundo. Provavelmente, nunca teremos oportunidades suficientes para homenagearmos esse heroísmo de gente que lutou contra os elementos e o destino inevitável da História.

in Domingo - Correio da Manhã - 30 Março 2008