domingo, março 09, 2008

Questões patrióticas

O velho Doutor Homem, meu pai, achava que a história se devia reescrever, de vez em quando, com a humildade dos vencidos. Ele acreditava haver um momento de sublime em Alcácer-Quibir, se bem que o rei D. Sebastião lhe suscitasse sentimentos muito dúbios. Loucura por loucura, costumava ele dizer, veja-se o que fez D. João I, que partiu para África com toda a família no encalço, destinada à glória ou à perdição – coube-lhe a glória, o que foi uma sorte.

Não se tratava de alterar os factos mas, precisamente, de verificar se eles estavam correctos tal como os conhecíamos dos manuais. Claro que, no fundo, se percebia a intenção profunda e verdadeira de “reescrever a história”. Basta ver que o exemplo principal era, quase sempre, o dos “bravos do Mindelo” que, afinal, não tinham desembarcado no Mindelo mas na Praia dos Ladrões. O pormenor é fatal para uma família habituada a, periodicamente, mandar restaurar ou verificar o velho retrato do senhor D. Miguel. Dir-se-á que se trata apenas de um nome (e que nome, escolhido a dedo), mas, como o leitor compreende, o mau-carácter que vive dentro de cada um está sempre à espera de uma oportunidade.

Os tempos não vão para melancolias e, creio, também não se entendem com os derrotados. Há, evidentemente, uma grande nobreza nas vidas dos derrotados da nossa história, desde D. Leonor Teles a Garcia de Orta, do Padre Vieira ao rei D. Carlos – mas sem comparação com a euforia que toma conta das multidões quando se evocam as figuras dos nossos demagogos mais conhecidos. É da regra ficar todo o espaço da tribuna da história reservado aos vencedores; são eles que comandam as hordas. A grande excepção, que eu conheça, foi a Tia Benedita – que se especializou, nos anos derradeiros da sua vida, em reviver a sua campanha contra a República e o fantasma do dr. Afonso Costa, que ela julgava ser dotado do dom da imortalidade apenas para poder continuar a atormentá-la até ao fim dos seus dias.

O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que essa obsessão a mantinha viva, funcionando como um antídoto contra a gota, as complicações renais e as gripes. Cada derrota e cada humilhação do seu temperamento ultramontano eram um bálsamo para a saúde e para o seu bem-estar. Caso único. Ela não se importava com minudências.

in Domingo – Correio da Manhã – 9 Março 2008