Évora Monte
A Tia Benedita, matriarca dos Homem, foi a guardiã do ultramontanismo da família. Nas vésperas de morrer, na mesma altura em que já se dançava abundantemente o ié-ié e Mary Quant vinha nas primeiras páginas dos jornais, insistia em que o dr. Afonso Costa se dirigia a Braga para confiscar os tesouros das igrejas. Avisada (pelo velho Doutor Homem, meu pai) de que o demagogo republicano já tinha morrido há muito tempo, ela tranquilizou-se momentaneamente mas não cedeu no essencial: “Isso é o que menino pensa.”
Em Ponte de Lima, onde ficava o casarão da família, uma velha composição de granitos e trepadeiras tentaculares, as notícias chegavam sem filtro, mas com moderação. Tendo perdido há muito as esperanças em ter alguém que lhe sucedesse na guarda da tradição política dos Homem de outras eras (o que ela atribuía à devassidão, à República e à alimentação moderna), a Tia Benedita abrandou o seu rigor, mas não deixava de dar opiniões. O velho Doutor Homem, meu pai, que chamava pantomineiro ao dr. Salazar, tratava-a com as honras que se deviam a uma matriarca de grandes famílias, e limitava-se a defendê-la de imaginários pedreiros-livres, regicidas e inimigos letais. Este anacronismo fantástico era uma obra de ficção alimentada pelo desinteresse da família, que gostava de se divertir com coisas sérias.
Hoje, passados esses anos, recordo a Tia Benedita como um monumento que resistiu às intempéries. Entre sobrinhos que fumam haxixe e irmãs e irmãos que passam férias na praia, gosto de recordá-la em voz alta como uma espécie de perfume do tempo, desajustada e feliz com os seus fantasmas, perseguindo as memórias do passado e recusando-se a ouvir o nome de Évora Monte, onde o general Azevedo e Lemos assinou os papéis da derrota. De certa maneira, o país inteiro havia de considerá-la uma velharia, útil para menosprezar-lhe o carácter e os destemperos. O país gosta muito de pantomineiros e abomina afrontamentos, porque é de meias-tintas; quando pode, elimina da História o nome dos vencidos, porque são incómodos e convém que não tenham virtudes cívicas. A memória da Tia Benedita é um ajuste de contas. Ela pertencia a outro mundo, certamente – é um mundo impossível e enterrado. Mas era o seu e vivia nele.
in Domingo – Revista Correio da Manhã – 3 Fevereiro 2008
Em Ponte de Lima, onde ficava o casarão da família, uma velha composição de granitos e trepadeiras tentaculares, as notícias chegavam sem filtro, mas com moderação. Tendo perdido há muito as esperanças em ter alguém que lhe sucedesse na guarda da tradição política dos Homem de outras eras (o que ela atribuía à devassidão, à República e à alimentação moderna), a Tia Benedita abrandou o seu rigor, mas não deixava de dar opiniões. O velho Doutor Homem, meu pai, que chamava pantomineiro ao dr. Salazar, tratava-a com as honras que se deviam a uma matriarca de grandes famílias, e limitava-se a defendê-la de imaginários pedreiros-livres, regicidas e inimigos letais. Este anacronismo fantástico era uma obra de ficção alimentada pelo desinteresse da família, que gostava de se divertir com coisas sérias.
Hoje, passados esses anos, recordo a Tia Benedita como um monumento que resistiu às intempéries. Entre sobrinhos que fumam haxixe e irmãs e irmãos que passam férias na praia, gosto de recordá-la em voz alta como uma espécie de perfume do tempo, desajustada e feliz com os seus fantasmas, perseguindo as memórias do passado e recusando-se a ouvir o nome de Évora Monte, onde o general Azevedo e Lemos assinou os papéis da derrota. De certa maneira, o país inteiro havia de considerá-la uma velharia, útil para menosprezar-lhe o carácter e os destemperos. O país gosta muito de pantomineiros e abomina afrontamentos, porque é de meias-tintas; quando pode, elimina da História o nome dos vencidos, porque são incómodos e convém que não tenham virtudes cívicas. A memória da Tia Benedita é um ajuste de contas. Ela pertencia a outro mundo, certamente – é um mundo impossível e enterrado. Mas era o seu e vivia nele.
in Domingo – Revista Correio da Manhã – 3 Fevereiro 2008
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