Mudar a sociedade
De entre as campanhas absurdas para que tentou, em vão, mobilizar-se ao longo da sua vida, o velho Doutor Homem, meu pai, pensou seriamente em decretar a independência das ilhas do rio Minho – que são três ou quatro – por motivos completamente irrisórios e destinados ao humor da família. Isso aconteceu em pleno Verão, e toda a gente pensou que as temperaturas iam demasiado elevadas. Pessoalmente, creio que o meu pai admitia que Espanha ia pedir a internacionalização da ilha dos Amores, ou da Boega, e a declaração de independência poderia impedir a Galiza de vir apanhar as trutas e a lampreia de que se acreditava um defensor.
Ele não assistiu às campanhas pela liberalização do haxixe ou pelo casamento dos homossexuais, mas era um homem do futuro, o que significava que era vastíssima a sua capacidade de tolerar fosse o que fosse. Ciente de que o género humano – e a diversidade das espécies – não era apenas exemplar nas também com uma tendência superlativa para o absurdo, ele acreditava que nos cabia tolerar os delírios dos outros. Os limites eram definidos pelas portas da velha casa de onde os Clérigos eram uma gigantesca sombra a cobrir a cidade, ou pelos muros do casarão familiar de Ponte de Lima, onde o espectro dos Homem de antanho, bigodudos e barbados, emparelhava com o retrato do príncipe proscrito, o senhor D. Miguel.
Ele imaginava que o seu escritório confortável, cheio de livros e de canetas antigas, com móveis de mogno escuro e de sofás mandados fazer – à medida – num artesão da Póvoa de Lanhoso, era uma espécie de gabinete de curiosidades importado directamente de Oxford, onde imaginava que teria vivido uma existência anterior. Em Londres, onde a sua juventude se deslumbrou, encontrou marxistas poderosos e da alta finança e pôde conversar com anarquistas servidos por criados circunspectos e tão sombrios como se tivesse sido educados num colégio real. Aprendeu, portanto, que não há coisas tão absurdas como imaginamos na nossa pobre moderação de provincianos que vão às festas de N. S. da Agonia, em Viana.
Como dizia o grande clássico, nada de humano lhe era estranho. Se bem que as suas leituras nunca tivessem passado por Terêncio, ele sabia que era necessário ser tolerante desde que não se interrompesse o curso da natureza ou o horário dos almoços de domingo, uma instituição que hoje se despreze inexplicavelmente. As noites de brídge à sexta-feira poderiam estar incluídas no cardápio de bens inamovíveis, mas ele não o admitiria.
A minha sobrinha, pelo contrário, acha que, pelo simples facto de existirem leis, a sociedade se rege por elas. Portanto, mudando as leis mudar-se-ia a sociedade. Tentei objectar com aquela insensatez que os velhos adquirem por desleixo, declarando que não só a sociedade raramente muda (embora se altere gravemente, com consequências imprevisíveis) como, além disso, ninguém sabe bem o que é a sociedade.
Este atrevimento, o de negar dois séculos de sociologia e os últimos cem anos de ciência política, poderia sair-me caro há alguns anos. Felizmente, a tolerância da juventude para com um velho despropositado e contemporâneo da descoberta da penicilina, tem crescido com generosidade.
A eleitora do Bloco de Esquerda limitou-se a sorrir à ideia, imune à minha inimputabilidade ideológica, convencida – como está –, por anos e anos de positivismo, de que o futuro é radioso e de que “a sociedade” marchará para a felicidade a passos largos, desde que os guias espirituais e políticos providenciem leis e regulamentos gerais. Tentei explicar que as pessoas se regem muito mais pelo costume e pelo interesse do que pelos “princípios” – uma vez que o género humano é tendencialmente preguiçoso, egoísta e pouco generoso. Portanto, o melhor seria que a pouco e pouco se fossem introduzindo “mudanças particulares” em vez de afrontar, radicalmente, a má índole das pessoas. Maria Luísa mencionou, então, uma longa lista de “melhorias sociais”, que iam desde a taxa ecológica para os sacos de plástico ao casamento dos homossexuais e à necessidade de quebrar o sigilo bancário. Sacos plásticos não uso. Mas o casamento dos homossexuais não me aflige; sou um celibatário sem remorso e acho que toda a gente tem direito à sua dose de infelicidade.
in Revista Notícias Sábado – 22 Dezembro 2007
Ele não assistiu às campanhas pela liberalização do haxixe ou pelo casamento dos homossexuais, mas era um homem do futuro, o que significava que era vastíssima a sua capacidade de tolerar fosse o que fosse. Ciente de que o género humano – e a diversidade das espécies – não era apenas exemplar nas também com uma tendência superlativa para o absurdo, ele acreditava que nos cabia tolerar os delírios dos outros. Os limites eram definidos pelas portas da velha casa de onde os Clérigos eram uma gigantesca sombra a cobrir a cidade, ou pelos muros do casarão familiar de Ponte de Lima, onde o espectro dos Homem de antanho, bigodudos e barbados, emparelhava com o retrato do príncipe proscrito, o senhor D. Miguel.
Ele imaginava que o seu escritório confortável, cheio de livros e de canetas antigas, com móveis de mogno escuro e de sofás mandados fazer – à medida – num artesão da Póvoa de Lanhoso, era uma espécie de gabinete de curiosidades importado directamente de Oxford, onde imaginava que teria vivido uma existência anterior. Em Londres, onde a sua juventude se deslumbrou, encontrou marxistas poderosos e da alta finança e pôde conversar com anarquistas servidos por criados circunspectos e tão sombrios como se tivesse sido educados num colégio real. Aprendeu, portanto, que não há coisas tão absurdas como imaginamos na nossa pobre moderação de provincianos que vão às festas de N. S. da Agonia, em Viana.
Como dizia o grande clássico, nada de humano lhe era estranho. Se bem que as suas leituras nunca tivessem passado por Terêncio, ele sabia que era necessário ser tolerante desde que não se interrompesse o curso da natureza ou o horário dos almoços de domingo, uma instituição que hoje se despreze inexplicavelmente. As noites de brídge à sexta-feira poderiam estar incluídas no cardápio de bens inamovíveis, mas ele não o admitiria.
A minha sobrinha, pelo contrário, acha que, pelo simples facto de existirem leis, a sociedade se rege por elas. Portanto, mudando as leis mudar-se-ia a sociedade. Tentei objectar com aquela insensatez que os velhos adquirem por desleixo, declarando que não só a sociedade raramente muda (embora se altere gravemente, com consequências imprevisíveis) como, além disso, ninguém sabe bem o que é a sociedade.
Este atrevimento, o de negar dois séculos de sociologia e os últimos cem anos de ciência política, poderia sair-me caro há alguns anos. Felizmente, a tolerância da juventude para com um velho despropositado e contemporâneo da descoberta da penicilina, tem crescido com generosidade.
A eleitora do Bloco de Esquerda limitou-se a sorrir à ideia, imune à minha inimputabilidade ideológica, convencida – como está –, por anos e anos de positivismo, de que o futuro é radioso e de que “a sociedade” marchará para a felicidade a passos largos, desde que os guias espirituais e políticos providenciem leis e regulamentos gerais. Tentei explicar que as pessoas se regem muito mais pelo costume e pelo interesse do que pelos “princípios” – uma vez que o género humano é tendencialmente preguiçoso, egoísta e pouco generoso. Portanto, o melhor seria que a pouco e pouco se fossem introduzindo “mudanças particulares” em vez de afrontar, radicalmente, a má índole das pessoas. Maria Luísa mencionou, então, uma longa lista de “melhorias sociais”, que iam desde a taxa ecológica para os sacos de plástico ao casamento dos homossexuais e à necessidade de quebrar o sigilo bancário. Sacos plásticos não uso. Mas o casamento dos homossexuais não me aflige; sou um celibatário sem remorso e acho que toda a gente tem direito à sua dose de infelicidade.
in Revista Notícias Sábado – 22 Dezembro 2007
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