Vida simples
De entre os territórios onde os Homem estabeleceram relações, África não consta como uma grande praça. Tirando o Tio Henrique (que era militar, do ramo de engenharia, mas que viria a ser distinguido domesticamente como um razoável instrumentista de oboé), uns primos que se fixaram no planalto central angolano, e um ramo transmontano da família que partiu para Lourenço Marques com funções administrativas, os Homem não foram “muito africanos”.
Havia, na biblioteca do Tio Alberto, uma secção africanista cheia de crónicas e de monografias quer sobre a colonização, quer sobre as aventuras “do sertão”. A expressão é erradíssima mas, entre paredes, certamente por influência de algum familiar bandeirante, tudo o que ficava a mais de cem quilómetros do Atlântico ou do Índico, em continente africano, era considerado “sertão”. Para efeitos práticos, quando se considerava o “mapa cor-de-rosa, havia um vastíssimo “sertão” entre Angola e Moçambique. Capelo e Ivens eram “sertanistas”. O doutor Livingstone tinha chegado ao “coração do sertão”. O longínquo Niassa, esse oásis oceânico no meio de África, era um lago “no sertão”.
Não sei como a designação deu frutos na família, geralmente tão dada a preciosismos e a anátemas sobre corruptelas na gramática, mas suponho que o erro diz bem da pouca importância que o continente teve na história da família, essencialmente minhota – e essencialmente provinciana. África, com as suas selvas e savanas, os seus vales profundos, os seus exploradores destemidos, os seus régulos e comerciantes, e a sua “glória do Império”, era um território inóspito e incompreendido. Quando os primos de Lourenço Marques regressaram à metrópole (e às suas montanhas de Trás-os-Montes), eram apenas ilustres desconhecidos que tinham “vindo do estrangeiro”.
Como profeticamente tinha anunciado o velho Doutor Homem, meu pai, por alturas dos acontecimentos de Goa, o desenlace estava já escrito quando D. Pedro “nos livrou do Brasil”. A frase era dita com um certo ressentimento. Ele guardava queixas sombrias contra a falta de bravura e de grandeza de figuras do passado, e invocava o abandono do arquipélago de Tristão da Cunha como um exemplo de pobreza espiritual. No fundo, habituado a lidar com os heróis das suas biografias inglesas, aqueles rochedos inóspitos deveriam ser conservados com mais razões do que os pântanos da Guiné: eram um archote solitário erguido nos mares do Sul, o emblema de uma casta de navegadores que atravessara as tempestades em busca de fama e de um lugar na história. Em seu entender, a abundância colonial, no tempo do ouro e da pimenta, criou uma classe de parasitas e de preguiçosos que se dedicava a escrever sonetos em vez de plantar hortas e indústrias, e de se aplicar na ciência bancária. A esta distância, compreendo bem a indignação.
Os portugueses não se dão bem com a vida simples. Acham-lhe uma brutal “falta de interesse”, como repetem as minhas irmãs quando passam mais de dois dias e duas noites no Inverno de Moledo ou cercadas pela melancolia outonal de Ponte de Lima.
Durante muito tempo pensei que se tratava, apenas, de uma ânsia pelas coisas que fervilham, de atracção pela vida moderna ou, até, de vontade de trabalhar e de amor pelas coisas produtivas. Erro fatal. Os portugueses acham-se, simplesmente, com “falta de interesse”. Não se bastam a si próprios. Sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se o português vê uma estrada atravessando as montanhas, quer transformá-la em auto-estrada. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa “falta de interesse”. Segundo as minhas irmãs, o Verão de Moledo, com os seus rituais perpétuos (praia, café, caminhadas, crepúsculos), pode ser muito saudável – mas não tem “interesse”. Só a simples menção de Tristão da Cunha iria causar-lhes um tédio mortal. Elas acham, com toda a razão, que eu ainda não me dei conta de que o mundo é uma coisa muito diferente.
in Revista Notícias Sábado – 15 Dezembro 2007
Havia, na biblioteca do Tio Alberto, uma secção africanista cheia de crónicas e de monografias quer sobre a colonização, quer sobre as aventuras “do sertão”. A expressão é erradíssima mas, entre paredes, certamente por influência de algum familiar bandeirante, tudo o que ficava a mais de cem quilómetros do Atlântico ou do Índico, em continente africano, era considerado “sertão”. Para efeitos práticos, quando se considerava o “mapa cor-de-rosa, havia um vastíssimo “sertão” entre Angola e Moçambique. Capelo e Ivens eram “sertanistas”. O doutor Livingstone tinha chegado ao “coração do sertão”. O longínquo Niassa, esse oásis oceânico no meio de África, era um lago “no sertão”.
Não sei como a designação deu frutos na família, geralmente tão dada a preciosismos e a anátemas sobre corruptelas na gramática, mas suponho que o erro diz bem da pouca importância que o continente teve na história da família, essencialmente minhota – e essencialmente provinciana. África, com as suas selvas e savanas, os seus vales profundos, os seus exploradores destemidos, os seus régulos e comerciantes, e a sua “glória do Império”, era um território inóspito e incompreendido. Quando os primos de Lourenço Marques regressaram à metrópole (e às suas montanhas de Trás-os-Montes), eram apenas ilustres desconhecidos que tinham “vindo do estrangeiro”.
Como profeticamente tinha anunciado o velho Doutor Homem, meu pai, por alturas dos acontecimentos de Goa, o desenlace estava já escrito quando D. Pedro “nos livrou do Brasil”. A frase era dita com um certo ressentimento. Ele guardava queixas sombrias contra a falta de bravura e de grandeza de figuras do passado, e invocava o abandono do arquipélago de Tristão da Cunha como um exemplo de pobreza espiritual. No fundo, habituado a lidar com os heróis das suas biografias inglesas, aqueles rochedos inóspitos deveriam ser conservados com mais razões do que os pântanos da Guiné: eram um archote solitário erguido nos mares do Sul, o emblema de uma casta de navegadores que atravessara as tempestades em busca de fama e de um lugar na história. Em seu entender, a abundância colonial, no tempo do ouro e da pimenta, criou uma classe de parasitas e de preguiçosos que se dedicava a escrever sonetos em vez de plantar hortas e indústrias, e de se aplicar na ciência bancária. A esta distância, compreendo bem a indignação.
Os portugueses não se dão bem com a vida simples. Acham-lhe uma brutal “falta de interesse”, como repetem as minhas irmãs quando passam mais de dois dias e duas noites no Inverno de Moledo ou cercadas pela melancolia outonal de Ponte de Lima.
Durante muito tempo pensei que se tratava, apenas, de uma ânsia pelas coisas que fervilham, de atracção pela vida moderna ou, até, de vontade de trabalhar e de amor pelas coisas produtivas. Erro fatal. Os portugueses acham-se, simplesmente, com “falta de interesse”. Não se bastam a si próprios. Sentar um português numa biblioteca rodeado de livros, numa varanda rodeado de paisagem, numa paisagem rodeado de natureza – é condená-lo ao cativeiro. Se o português vê uma estrada atravessando as montanhas, quer transformá-la em auto-estrada. Se vê uma pequena e pacata vila do Minho, como Âncora ou Cerveira, quer enchê-la de actividade. Se tem um jardim no meio de uma cidade, quer preenchê-lo de barraquinhas de feira e de desfiles. Não lhes bastam nem a beleza das coisas nem a tranquilidade dos elementos (por oposição às coisas que não o são); é preciso contornar essa “falta de interesse”. Segundo as minhas irmãs, o Verão de Moledo, com os seus rituais perpétuos (praia, café, caminhadas, crepúsculos), pode ser muito saudável – mas não tem “interesse”. Só a simples menção de Tristão da Cunha iria causar-lhes um tédio mortal. Elas acham, com toda a razão, que eu ainda não me dei conta de que o mundo é uma coisa muito diferente.
in Revista Notícias Sábado – 15 Dezembro 2007
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