O historiador caseiro
Não posso, todos os anos, evocar a Espanha. Na semana passada, os dois ou três leitores que me acompanham acharam que esqueci a Espanha a propósito do 1.º de Dezembro; o facto é que já escrevi sobre a data e sobre a impressão que o assunto nos fazia, mas não é saudável repetir todos os anos o mesmo cardápio patriótico, louvando (pela cartilha comum) D. João IV e os conjurados, sobretudo sabendo o que se sabe nas entrelinhas da História Pátria.
Esquecer a Espanha, de resto, é impossível. Ela está ali ao lado. Os passeios das manhãs de sábado, até ao café da praia, mostram-me que a ínsua permanece inamovível, traçando uma bissectriz até às colinas mais elevadas de Santa Tecla, do outro lado do rio e da foz. Estas coisas sempre estiveram ali. Conservámos esse azimute como uma garantia da preservação da espécie: enquanto víssemos Santa Tecla, estávamos salvos e não tinham mudado, por conveniência, os pontos cardeais.
Nos idos de 1975, quando a haste mais ultramontana da família se amedrontava com as etapas da revolução, aquela montanha quase árida sempre nos protegeu; éramos reaccionários sem importância nem estatuto e ninguém nos perseguia. Diferentemente dos que fugiram para o Brasil ou se esconderam noutros recantos do mapa, os Homem eram gente que passava bem naquela escala de discrição que proporcionava o conforto dos timoratos ou, pelo menos, dos absentistas. Talvez, se fosse viva, a tia Benedita encarasse a hipótese de marchar para Santiago de Compostela com o argumento de que ficava mais perto das relíquias do santo e a salvo de qualquer ameaça mais contundente. Vigo seria uma hipótese, mas a cidade era bastante cara para um exílio provinciano, mesmo figurativo. De modo que ficámos entregues aos muros cobertos de musgo do casarão de Ponte de Lima, onde o espírito conspirativo nunca ultrapassou o primarismo que nos envergonha desde que o senhor D. Miguel deixou Cascais na direcção do desterro.
Poderíamos ter sido heróis. Esta suposição, que o velho doutor Homem, meu pai, atribuía ao meu bisavô paterno, era o sinal de que tinha expirado o nosso prazo de validade e de que raramente nos considerávamos deste mundo. Os heróis de hoje e de ontem eram feitos de outra matéria, e o heroísmo dificilmente se contentava em evocar príncipes que tinham malbaratado o seu capital de erros. Portanto, periodicamente e durante muito tempo, o heroísmo caseiro limitava-se a conservar em bom estado uma cópia manuscrita do discurso de José Acúrcio das Neves, de 1828, sobre a legitimidade do Príncipe para ocupar o trono, e - na mesma data - considerar que houve demasiadas coincidências: a independência do Brasil deixou D. Pedro desocupado, Metternich era um fraco, os Habsburgos ambiciosos, e Wellington um infeliz. O velho doutor Homem considerava que estas minudências eram coisas passadas mas ficava-nos bem um mínimo de respeito pelos derrotados (argumentando que isso ajudava na formação do carácter, uma vez que a vida não era feita de vitórias).
Ele tinha uma sincera e profunda simpatia pelos deserdados da glória, mas nunca pisava o risco com o argumento de que tinha uma família para alimentar.
Mas havia o recurso a picardias. Em disputa contra um panfletário dos Fenianos, campeão de bilhar no Ateneu do Porto, que escrevera erradamente o cognome do senhor D. Miguel, o tio Alberto não hesitou em mencionar que D. Maria da Glória, feita rainha aos 15 anos, não passava de uma prima da rainha Vitória (o que, para ele, na sua devassidão, era insulto bastante) e que o autor do Hino da Carta ("Proclamemos Portugueses/ a Divinal Constituição...") merecia ser açoitado por má métrica.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto são histórias da Carochinha. De certa maneira, tem razão. Hoje ninguém sabe quem era a rainha Vitória e quase toda a gente ignora que D. Pedro foi o autor do Hino da Carta. Escrever sobre o passado obriga-nos a correr riscos fatais. O primeiro dever de um cidadão, mal saiba ler, escrever e contar, devia ser o de entender em que país vive e que parte do passado pode ser menos lembrada. Em cada família devia existir um historiador.
in Revista Notícias Sábado – 8 Dezembro 2007
Esquecer a Espanha, de resto, é impossível. Ela está ali ao lado. Os passeios das manhãs de sábado, até ao café da praia, mostram-me que a ínsua permanece inamovível, traçando uma bissectriz até às colinas mais elevadas de Santa Tecla, do outro lado do rio e da foz. Estas coisas sempre estiveram ali. Conservámos esse azimute como uma garantia da preservação da espécie: enquanto víssemos Santa Tecla, estávamos salvos e não tinham mudado, por conveniência, os pontos cardeais.
Nos idos de 1975, quando a haste mais ultramontana da família se amedrontava com as etapas da revolução, aquela montanha quase árida sempre nos protegeu; éramos reaccionários sem importância nem estatuto e ninguém nos perseguia. Diferentemente dos que fugiram para o Brasil ou se esconderam noutros recantos do mapa, os Homem eram gente que passava bem naquela escala de discrição que proporcionava o conforto dos timoratos ou, pelo menos, dos absentistas. Talvez, se fosse viva, a tia Benedita encarasse a hipótese de marchar para Santiago de Compostela com o argumento de que ficava mais perto das relíquias do santo e a salvo de qualquer ameaça mais contundente. Vigo seria uma hipótese, mas a cidade era bastante cara para um exílio provinciano, mesmo figurativo. De modo que ficámos entregues aos muros cobertos de musgo do casarão de Ponte de Lima, onde o espírito conspirativo nunca ultrapassou o primarismo que nos envergonha desde que o senhor D. Miguel deixou Cascais na direcção do desterro.
Poderíamos ter sido heróis. Esta suposição, que o velho doutor Homem, meu pai, atribuía ao meu bisavô paterno, era o sinal de que tinha expirado o nosso prazo de validade e de que raramente nos considerávamos deste mundo. Os heróis de hoje e de ontem eram feitos de outra matéria, e o heroísmo dificilmente se contentava em evocar príncipes que tinham malbaratado o seu capital de erros. Portanto, periodicamente e durante muito tempo, o heroísmo caseiro limitava-se a conservar em bom estado uma cópia manuscrita do discurso de José Acúrcio das Neves, de 1828, sobre a legitimidade do Príncipe para ocupar o trono, e - na mesma data - considerar que houve demasiadas coincidências: a independência do Brasil deixou D. Pedro desocupado, Metternich era um fraco, os Habsburgos ambiciosos, e Wellington um infeliz. O velho doutor Homem considerava que estas minudências eram coisas passadas mas ficava-nos bem um mínimo de respeito pelos derrotados (argumentando que isso ajudava na formação do carácter, uma vez que a vida não era feita de vitórias).
Ele tinha uma sincera e profunda simpatia pelos deserdados da glória, mas nunca pisava o risco com o argumento de que tinha uma família para alimentar.
Mas havia o recurso a picardias. Em disputa contra um panfletário dos Fenianos, campeão de bilhar no Ateneu do Porto, que escrevera erradamente o cognome do senhor D. Miguel, o tio Alberto não hesitou em mencionar que D. Maria da Glória, feita rainha aos 15 anos, não passava de uma prima da rainha Vitória (o que, para ele, na sua devassidão, era insulto bastante) e que o autor do Hino da Carta ("Proclamemos Portugueses/ a Divinal Constituição...") merecia ser açoitado por má métrica.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que isto são histórias da Carochinha. De certa maneira, tem razão. Hoje ninguém sabe quem era a rainha Vitória e quase toda a gente ignora que D. Pedro foi o autor do Hino da Carta. Escrever sobre o passado obriga-nos a correr riscos fatais. O primeiro dever de um cidadão, mal saiba ler, escrever e contar, devia ser o de entender em que país vive e que parte do passado pode ser menos lembrada. Em cada família devia existir um historiador.
in Revista Notícias Sábado – 8 Dezembro 2007
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