sábado, dezembro 01, 2007

O assunto carnal

O período do Natal arrasta consigo, como também acontece com o Verão, os chamados “livros da moda”. As minhas irmãs transformaram-se em bibliófilas e críticas literárias, mencionando – ao almoço de domingo – títulos de romances que lhes ocuparão os serões de Inverno. A culpa é do frio. De visita novamente, a jovem namorada holandesa do meu sobrinho Pedro lembrou que na sua infância frísia se lia bastante enquanto o Inverno rondava a ilha de Ameland. A minha sobrinha Maria Luísa quis saber como era a bibliografia local, coisa que atribuo menos à curiosidade do que à tentação de examinar a biblioteca de Isabelle, uma espécie de provação que a bióloga holandesa terá de sofrer até ser admitida no círculo familiar.

As minhas irmãs reprovam a diligência. Elas acham que os livros são matéria pessoal, um pouco como a roupa interior e o passaporte, com a diferença de que a biblioteca se renova de acordo com as “tendências gerais” e o passaporte é uma obrigação social. Elas discutem um certo romance da moda, uma saga familiar que rebusca momentos da nossa história – e acham que se lê bem, o que significa que não têm de ir ao dicionário ou reler duas vezes o mesmo capítulo. É uma virtude duvidosa. Um livro que se lê bem não acrescenta quase nada à nossa preguiça natural. Mencionei, à mesa, que uma das lições mais devassas sobre o passatempo da leitura vem no livro da Dra. Filomena Mónica, “Bilhete de Identidade”, quando recorda as tardes que passou, bebericando brandy e lendo apaixonadamente os clássicos. É uma cena digna de “Madame Bovary”, de “A Mulher de Trinta Anos” e, simultaneamente, de “O Monte dos Vendavais”. Em começando a enumerar livros, o disparate é livre.

Mesmo em família, considera-se que o livro da Dra. Filomena Mónica “ultrapassou um nadinha os limites”, o que creio dever-se ao facto de uma senhora contar, no livro, episódios que deveria guardar para si (a minha sobrinha Maria Luísa acha que me fica bem, enquanto eminência reaccionária do clã, invocar o tema). Ora, acontece que as passagens mais enternecedoras do seu livro não têm a ver com o assunto carnal, propriamente dito, mas sim com os grandes momentos de solidão que somos levados a imaginar – e que nos emprestam um perfume de ilusão e de nostalgia, misturando Flaubert e brandy, leitura e contemplação.

O velho Doutor Homem, meu pai, aconselhava a que se avaliasse um “romance da moda” pela forma como tratava o “assunto carnal”, precisamente, aquele momento em que o escritor defrontava os seus fantasmas mais íntimos. Ele pensava que o género humano, para proteger-se, devia evitar minudências de mau-gosto e de vulgaridade, arrepiando caminho antes de chegar ao momento da verdade; por esse motivo recitava os versos mais lúbricos de Junqueiro (dois ou três) ou de Leitão da Silva (era o modo familiar – e ressentido, reconheço – como se designava Garrett), divertindo-nos com a entoação e as escorregadelas de estilo, apenas para nos provar que amor, sexo, paixão e outros assuntos muito populares, frequentemente provocam riso se forem levados a sério. O exemplo maior eram os versos fatais de Junqueiro, que ele repetia em circunstâncias inadequadas: “Eu não te tenho amor simplesmente. A paixão / Em mim não é amor; filha, é adoração!” O meu avô (que privou episodicamente com o bardo) não aprovava a pilhéria, que ele atribuía ao miguelismo inconsequente dos Homem.

As minhas irmãs, que são senhoras de hoje e viajam bastante, não se chocam com vulgaridades e confessaram que “o assunto carnal” aparecia algumas vezes ao longo do livro, mas – anotaram – como uma espécie de adereço, de advérbio, destinado a “apimentar” a história, que é ligeiramente aborrecida. Limitam-se a considerar que é um tempero.

O Tio Álvaro, o bibliófilo solteirão de São Pedro dos Arcos, possuía uma interessante colecção da chamada “literatura vitoriana” em encadernações sóbrias e respeitáveis que encobriam aquelas obras carregadas de luxúria, que, imodestamente, classificava como “raridades”. Ele sabia que o tempero temperava, desde que viesse a propósito – e que os livros da moda eram apenas colecções desirmanadas de especiarias.

in Revista Notícias Sábado – 1 Dezembro 2007