A esquerda e a direita
A minha sobrinha Maria Luísa acha que eu não sou quem sou, declarando falida a minha herança conservadora – que ela atribui a um aparente desconchavo, uma vez que as pessoas de que ela gosta pertencem, com poucas excepções, "à esquerda".
Durante a tarde de sábado aceitam-se estas considerações, porque o domingo se aproxima e, com ele, um raio de luz ilumina as nuvens que se precipitam sobre Moledo, lembrando-nos a estação do ano, a idade e a relativa inclemência do clima. Esta ideia geral sobre "as minhas ideias políticas" regressa ciclicamente após períodos de doce acalmia e de suavíssimo concerto familiar. Ora, acontece que eu pertenço – por preguiça, claro está – a outro mundo. Esse mundo tem os seus limites e, pior ainda, as suas limitações. Na adolescência desse universo, a esquerda e a direita tinham obrigações e sinais que as identificavam. Não existem mais. A minha sobrinha acha que a bondade geral, a sensibilidade e a generosidade nasceram na margem esquerda dos caminhos, ficando a direita reservada para os espíritos tortuosos, para a maldade e para a insensibilidade. Por mais de uma vez essa disputa reacendeu-se a partir de evidências que eu julgava inquestionáveis. Por exemplo, a biblioteca, nome que guardamos – em casa – para o armazém de velharias bibliográficas e fundo de literatura geral que foi passando de pais para filhos. Com esta biblioteca, extensível em temas e autores como um planisfério elástico, eu não poderia levar a sério nem "o conservadorismo da família", nem a existência do retrato do Senhor D. Miguel (no casarão de Ponte de Lima), nem a ideia de que o mundo está razoavelmente bem feito. Eu devia, com algum exagero, evidentemente, esconder-me nas penumbras a lançar bombas contra a família, as classes médias e o senhor arcebispo de Braga.
Acontece que um dos desacertos com que o mundo tem lutado nasce da ideia de que "o bem" está à esquerda, a quem o futuro assenta como uma luva. Ao apropriar-se do "bem", fica reservado o "mal" para todos os que não ponderam votar no dr. Louçã – desde velhos ultramontanos (que já não existem) a cépticos que manuseiam almanaques de história pátria dos últimos duzentos anos ou que duvidam das boas intenções da sociedade em geral. E, estando o "bem" em algum lugar, ele não pode praticar-se se não se transportar a bandeira das esquerdas. É, digamos, uma lógica insofismável.
Os sábados de Moledo são muito dados ao temperamento peripatético; há uma certa melancolia dos pinhais que o Outono agrava e amplia. As discussões ideológicas não ultrapassam esse limite para não ferir a paisagem ou enegrecer o crepúsculo. Essencialmente, eu não sou um homem de fé. A tia Benedita (que chefiava o ramo ultramontano da família) perseguia este género de excentricidade, que ela acreditava estar na origem de quase todos os pecados capitais e a quem atribuía a capacidade de fazer ressuscitar o dr. Afonso Costa, de reanimar a Carbonária e de fazer ruir todo o edifício moral em que viveu. Convenhamos que ela tinha certa razão. Mais por preguiça (que é o estado natural no género humano) do que por tentação, os Homem de quase todas as gerações posteriores à convenção de Évora Monte e ao exílio do príncipe proscrito evitaram grandes altercações com os novos proprietários do País. Meteram-se muito consigo. Acharam – em graus diferentes – que esse mundo feito de virtudes republicanas, de escola pública, de ateísmo e de fé nas classes trabalhadoras não garantia a bondade das suas intenções. Limitaram-se, por isso, e em proporções diversas, a gemer, a divorciar-se, a trabalhar, a perder o pé em aventuras mundanas e a não frequentar os casinos. Todos sabiam o essencial; e o essencial era que o género humano é um mistério; em podendo resvalar para a desgraça, fica garantida a desgraça; a "novidade" pode ser "novidade" mas não traz grande mudança nas nossas vidas.
Apesar de concordarmos em muitas coisas, a minha sobrinha não pondera analisar a hipótese de estar cada vez mais "à direita". Ela considera, com grande magnanimidade, que o mundo lhe obedece cegamente, e às suas ideias – e que eu é que estou mais "à esquerda". Disfarcei como pude, olhando para o relógio. Os dias estão mais pequenos.
in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007
Durante a tarde de sábado aceitam-se estas considerações, porque o domingo se aproxima e, com ele, um raio de luz ilumina as nuvens que se precipitam sobre Moledo, lembrando-nos a estação do ano, a idade e a relativa inclemência do clima. Esta ideia geral sobre "as minhas ideias políticas" regressa ciclicamente após períodos de doce acalmia e de suavíssimo concerto familiar. Ora, acontece que eu pertenço – por preguiça, claro está – a outro mundo. Esse mundo tem os seus limites e, pior ainda, as suas limitações. Na adolescência desse universo, a esquerda e a direita tinham obrigações e sinais que as identificavam. Não existem mais. A minha sobrinha acha que a bondade geral, a sensibilidade e a generosidade nasceram na margem esquerda dos caminhos, ficando a direita reservada para os espíritos tortuosos, para a maldade e para a insensibilidade. Por mais de uma vez essa disputa reacendeu-se a partir de evidências que eu julgava inquestionáveis. Por exemplo, a biblioteca, nome que guardamos – em casa – para o armazém de velharias bibliográficas e fundo de literatura geral que foi passando de pais para filhos. Com esta biblioteca, extensível em temas e autores como um planisfério elástico, eu não poderia levar a sério nem "o conservadorismo da família", nem a existência do retrato do Senhor D. Miguel (no casarão de Ponte de Lima), nem a ideia de que o mundo está razoavelmente bem feito. Eu devia, com algum exagero, evidentemente, esconder-me nas penumbras a lançar bombas contra a família, as classes médias e o senhor arcebispo de Braga.
Acontece que um dos desacertos com que o mundo tem lutado nasce da ideia de que "o bem" está à esquerda, a quem o futuro assenta como uma luva. Ao apropriar-se do "bem", fica reservado o "mal" para todos os que não ponderam votar no dr. Louçã – desde velhos ultramontanos (que já não existem) a cépticos que manuseiam almanaques de história pátria dos últimos duzentos anos ou que duvidam das boas intenções da sociedade em geral. E, estando o "bem" em algum lugar, ele não pode praticar-se se não se transportar a bandeira das esquerdas. É, digamos, uma lógica insofismável.
Os sábados de Moledo são muito dados ao temperamento peripatético; há uma certa melancolia dos pinhais que o Outono agrava e amplia. As discussões ideológicas não ultrapassam esse limite para não ferir a paisagem ou enegrecer o crepúsculo. Essencialmente, eu não sou um homem de fé. A tia Benedita (que chefiava o ramo ultramontano da família) perseguia este género de excentricidade, que ela acreditava estar na origem de quase todos os pecados capitais e a quem atribuía a capacidade de fazer ressuscitar o dr. Afonso Costa, de reanimar a Carbonária e de fazer ruir todo o edifício moral em que viveu. Convenhamos que ela tinha certa razão. Mais por preguiça (que é o estado natural no género humano) do que por tentação, os Homem de quase todas as gerações posteriores à convenção de Évora Monte e ao exílio do príncipe proscrito evitaram grandes altercações com os novos proprietários do País. Meteram-se muito consigo. Acharam – em graus diferentes – que esse mundo feito de virtudes republicanas, de escola pública, de ateísmo e de fé nas classes trabalhadoras não garantia a bondade das suas intenções. Limitaram-se, por isso, e em proporções diversas, a gemer, a divorciar-se, a trabalhar, a perder o pé em aventuras mundanas e a não frequentar os casinos. Todos sabiam o essencial; e o essencial era que o género humano é um mistério; em podendo resvalar para a desgraça, fica garantida a desgraça; a "novidade" pode ser "novidade" mas não traz grande mudança nas nossas vidas.
Apesar de concordarmos em muitas coisas, a minha sobrinha não pondera analisar a hipótese de estar cada vez mais "à direita". Ela considera, com grande magnanimidade, que o mundo lhe obedece cegamente, e às suas ideias – e que eu é que estou mais "à esquerda". Disfarcei como pude, olhando para o relógio. Os dias estão mais pequenos.
in Revista Notícias Sábado – 17 Novembro 2007
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