Cismar pelo Inverno
Dona Elaine, a governanta e autoridade desta casa, antecipou para esta semana a temporada de Inverno, ainda tímida. Este ano, uma chuva providencial ajudou bastante, e ela justificou: "Assim estará tudo preparado."
Chegar o Inverno lembra um dos momentos preferidos de Macbeth, na morte da sua mulher: "Apaga-te breve chama, apaga-te. A vida é apenas uma sombra que passa." Em 1606, a ideia ainda não se tinha repetido com esta constância – mas no nosso século trata-se de um exagero melancólico que não acrescenta grande coisa nem à literatura nem à nossa opinião sobre a vida e as suas tragédias. Ora, o Inverno começa por ser este abismo. Dona Elaine, que nunca leu Shakespeare, é uma filósofa de Vila Nova de Cerveira com uma larga experiência de conselheira para assuntos gerais, se bem que por vezes abuse na utilização de provérbios que servem para tudo. Nascida numa das aldeias das colinas, emigrou com os pais para o Brasil, de onde regressou ainda nova mas já viúva e decidida a passar alguns anos da sua idade madura numa casa que recebeu reformas e melhorias. Ao fim de uns meses de ociosidade, durante os quais recuperou algum sotaque dos seus pais, e perdeu parte do próprio, começou a cuidar dos destinos deste eremitério de Moledo, colocando em ordem a vasta anarquia em que ameaçava tornar-se o Verão de 1985, com as visitas da família, a areia arrastada da praia e uma certa euforia vivida às horas das refeições. Pôs tudo em ordem e tratou de mostrar que sabia quem mandava: ela. Todos lhe agradecemos.
Habituada ao Verão eterno dos trópicos, custava-lhe a princípio encarar este mundo de baixas temperaturas, lareiras, cheiro de lenha queimada, e árvores que largam, à sorte, as folhas nos jardins. Em seu entender, desde que existisse ordem estava tudo encaminhado. As folhas das árvores, caindo ao acaso no jardim e à porta de casa, eram um atrevimento que punha em causa esse sentido de arrumação e de disciplina que ela impôs nos seus domínios.
Por isso, o Inverno começa, verdadeiramente, quando Dona Elaine se dispõe a anunciar que a roupa das camas está mudada e que as ementas de fim-de-semana estão definitivamente alteradas. Ela costuma rematar estes anúncios com um provérbio escolhido a dedo, e avisando-me (com uma subtileza que acaba por não escapar a ninguém) que não devo começar a cismar. A proximidade do Inverno e das suas tempestades e desconcertos é o cenário ideal para que os velhos "comecem a cismar".
"Em vez de ficar aí a cismar", já ouvi várias vezes, "podia fazer uma viagem." A minha sobrinha Maria Luísa acha bem. Ela supõe que as viagens são um dos capítulos de qualquer farmacopeia universal, rearranjando o sistema nervoso do ser humano e estabilizando as funções do aparelho circulatório. Costuma dizer-me isto na viagem anual à casa de Camilo Castelo Branco, nos arredores de Famalicão, onde gosto de ir verificar se o relógio de Pinheiro Alves se mantém naquela triste posição. Nessa altura aproveito para desobedecer às ordens do meu médico, atrevendo-me a um almoço minhoto com todas as excepções permitidas.
Ora, eu acho isso uma ameaça de que não consigo defender-me. Na minha família não costumávamos cismar. Dona Ester, minha mãe, educou-nos para podermos suportar desgostos e desconsiderações; o velho doutor Homem, meu pai, comportava-se como um poeta satírico cujo propósito era rir dos românticos. Ele costumava dizer que a choraminguice portuguesa tinha sido transformada em lei pelo constitucionalismo e pelos liberais que tanto assinavam decretos como nos puniam com sonetos. A minha sobrinha sofre bastante quando ouve estas perversidades; ela acha que se deve premiar a "sensibilidade" e valorizar o lado "emocional" da vida. Nunca conseguimos chegar a acordo sobre o assunto.
Acontece que a "sensibilidade" e o lado "emocional" da vida são coisas para consumo moderado, como os medicamentos, e que a sua prescrição deve ser consagrada para uso íntimo e estritamente pessoal. Ao ver as montanhas do meu Minho que espera o Inverno, ou a praia de Moledo que escurece com a visão da ínsua, eu não começo a cismar. Simplesmente, fico com frio. E agasalho-me.
in Revista Notícias Sábado – 10 Novembro 2007
Chegar o Inverno lembra um dos momentos preferidos de Macbeth, na morte da sua mulher: "Apaga-te breve chama, apaga-te. A vida é apenas uma sombra que passa." Em 1606, a ideia ainda não se tinha repetido com esta constância – mas no nosso século trata-se de um exagero melancólico que não acrescenta grande coisa nem à literatura nem à nossa opinião sobre a vida e as suas tragédias. Ora, o Inverno começa por ser este abismo. Dona Elaine, que nunca leu Shakespeare, é uma filósofa de Vila Nova de Cerveira com uma larga experiência de conselheira para assuntos gerais, se bem que por vezes abuse na utilização de provérbios que servem para tudo. Nascida numa das aldeias das colinas, emigrou com os pais para o Brasil, de onde regressou ainda nova mas já viúva e decidida a passar alguns anos da sua idade madura numa casa que recebeu reformas e melhorias. Ao fim de uns meses de ociosidade, durante os quais recuperou algum sotaque dos seus pais, e perdeu parte do próprio, começou a cuidar dos destinos deste eremitério de Moledo, colocando em ordem a vasta anarquia em que ameaçava tornar-se o Verão de 1985, com as visitas da família, a areia arrastada da praia e uma certa euforia vivida às horas das refeições. Pôs tudo em ordem e tratou de mostrar que sabia quem mandava: ela. Todos lhe agradecemos.
Habituada ao Verão eterno dos trópicos, custava-lhe a princípio encarar este mundo de baixas temperaturas, lareiras, cheiro de lenha queimada, e árvores que largam, à sorte, as folhas nos jardins. Em seu entender, desde que existisse ordem estava tudo encaminhado. As folhas das árvores, caindo ao acaso no jardim e à porta de casa, eram um atrevimento que punha em causa esse sentido de arrumação e de disciplina que ela impôs nos seus domínios.
Por isso, o Inverno começa, verdadeiramente, quando Dona Elaine se dispõe a anunciar que a roupa das camas está mudada e que as ementas de fim-de-semana estão definitivamente alteradas. Ela costuma rematar estes anúncios com um provérbio escolhido a dedo, e avisando-me (com uma subtileza que acaba por não escapar a ninguém) que não devo começar a cismar. A proximidade do Inverno e das suas tempestades e desconcertos é o cenário ideal para que os velhos "comecem a cismar".
"Em vez de ficar aí a cismar", já ouvi várias vezes, "podia fazer uma viagem." A minha sobrinha Maria Luísa acha bem. Ela supõe que as viagens são um dos capítulos de qualquer farmacopeia universal, rearranjando o sistema nervoso do ser humano e estabilizando as funções do aparelho circulatório. Costuma dizer-me isto na viagem anual à casa de Camilo Castelo Branco, nos arredores de Famalicão, onde gosto de ir verificar se o relógio de Pinheiro Alves se mantém naquela triste posição. Nessa altura aproveito para desobedecer às ordens do meu médico, atrevendo-me a um almoço minhoto com todas as excepções permitidas.
Ora, eu acho isso uma ameaça de que não consigo defender-me. Na minha família não costumávamos cismar. Dona Ester, minha mãe, educou-nos para podermos suportar desgostos e desconsiderações; o velho doutor Homem, meu pai, comportava-se como um poeta satírico cujo propósito era rir dos românticos. Ele costumava dizer que a choraminguice portuguesa tinha sido transformada em lei pelo constitucionalismo e pelos liberais que tanto assinavam decretos como nos puniam com sonetos. A minha sobrinha sofre bastante quando ouve estas perversidades; ela acha que se deve premiar a "sensibilidade" e valorizar o lado "emocional" da vida. Nunca conseguimos chegar a acordo sobre o assunto.
Acontece que a "sensibilidade" e o lado "emocional" da vida são coisas para consumo moderado, como os medicamentos, e que a sua prescrição deve ser consagrada para uso íntimo e estritamente pessoal. Ao ver as montanhas do meu Minho que espera o Inverno, ou a praia de Moledo que escurece com a visão da ínsua, eu não começo a cismar. Simplesmente, fico com frio. E agasalho-me.
in Revista Notícias Sábado – 10 Novembro 2007
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