Coisas de gastronomia
A tia Julieta, uma das grandes senhoras que iluminou todo o século passado, era uma gastrónoma exigente e inesperada. Começou a cozinhar apenas depois de ter enviuvado aos 40 anos. Com surpresa de todos, a perda não a desencaminhou no labirinto da idade madura, antes a libertou para as alegrias da cozinha e, no seu caso, da mesa. As senhoras desses anos (a tia Julieta nasceu em 1892) não sabiam nem o que era o constitucionalismo nem – depois de casadas — se sentavam à mesa antes dos homens. Arrumados os dois óbices (a ignorância sobre o constitucionalismo e a existência de um marido), a tia Julieta singrou. Ao contrário da tia Benedita, representante abnegada mas natural do génio ultramontano, ela encarou a viuvez como uma libertação e uma razoável condição do destino. Essa leveza de espírito levou parte da família a considerar que "ela sempre quis ser viúva" como outras senhoras queriam ser casadas e outras, muito poucas, ou nenhumas, queriam continuar solteiras. Mas eu sou o último dos últimos a poder ou a querer explicar o comportamento e as escolhas das senhoras. Limito-me a continuar a tratá-las por "senhoras" em vez de por "mulheres". A minha sobrinha diz que, por detrás desta eventual delicadeza, está o velho reaccionarismo que me leva a ignorar a existência das sufragistas e das suas continuadoras. Ignoro; sou apenas um pobre e velho homem do Minho.
Seja como for, a tia Julieta deixou alguns apontamentos de cozinha que foram preservados ao longo dos anos e unanimemente considerados geniais. Eu entro pouco na cozinha e não conheço "os maravilhosos cadernos" (a expressão é de Dona Elaine, a governanta da casa de Moledo) mas imagino a tia Julieta provando e distribuindo manjares à mesa da sua casa da Foz, municiando de bênçãos uma família cheia de bom apetite. Penso que não se importava de ser amada por isso; gostava de comer e de ir a almoços de família, para os quais transportava tabuleiros e travessas, marmitas com molhos, e onde – em surdina – explicava algumas das suas receitas. Ninguém acreditava nessas descrições nem nas fórmulas dessa alquimia culinária; as senhoras desconfiam muito umas das outras e é natural que ela apreciasse aquela espécie de jogo em que era admirada pelos pratos que cozinhava e, simultaneamente, alvo de inveja e de desconsideração. Suportava tudo com um sorriso, como se compreendesse o alcance da expressão "natureza humana".
Os meus irmãos comovem-se ao lembrar a 'gentillesse' da massa tenra e a arte suprema representada pelo seu arroz de pato, uma obra paciente e memorável. Eu recordo — além de tudo isso – o ar guloso, a forma como as pupilas se dilatavam benignamente à hora das refeições, e até os seus juízos cheios de ironia sobre a cozinha das suas irmãs e cunhadas. Nesse mundo feminino, sem marido (que morreu elegante, ligeiramente magro, sem apetite) e sem obrigações diárias, ela fazia da cozinha um palácio prazenteiro e dedicado às grandes revelações que saíam dos fornos e das panelas. A tia Benedita nunca lhe perdoou ter ficado viúva mais cedo do que seria decente, apenas aos quarenta anos, quando um resto de juventude se manifesta em pequenas indecisões e entre as rugas do rosto; mas se havia culpas a atribuir, elas deviam calhar ao tio Duarte Miguel, que decidiu penar em África durante os anos de juventude, numa comissão, e contrair uma malária que o deixou fraco e imprestável para os grandes esforços do matrimónio.
O tio Alberto, seu sobrinho e gastrónomo de São Pedro de Arcos, insistia em visitá-la amiúde, diz-se que para obter alguma receita com que impressionar as suas visitas. Não era verdade. Um homem que recebe Don Álvaro Cunqueiro com ovos com chouriço e sardinhas fritas (o mestre galego achou sublimes ambas as coisas) não procura impressionar as visitas; procura antes conquistá-las, como é dever de todo o anfitrião; ovos com chouriço e sardinhas fritas são uma criação saborosa mas, servidas ao talento e ao apetite de Don Álvaro, são um gesto decisivo e condenado a ficar na memória.
in Revista Notícias Sábado – 3 Novembro 2007
Seja como for, a tia Julieta deixou alguns apontamentos de cozinha que foram preservados ao longo dos anos e unanimemente considerados geniais. Eu entro pouco na cozinha e não conheço "os maravilhosos cadernos" (a expressão é de Dona Elaine, a governanta da casa de Moledo) mas imagino a tia Julieta provando e distribuindo manjares à mesa da sua casa da Foz, municiando de bênçãos uma família cheia de bom apetite. Penso que não se importava de ser amada por isso; gostava de comer e de ir a almoços de família, para os quais transportava tabuleiros e travessas, marmitas com molhos, e onde – em surdina – explicava algumas das suas receitas. Ninguém acreditava nessas descrições nem nas fórmulas dessa alquimia culinária; as senhoras desconfiam muito umas das outras e é natural que ela apreciasse aquela espécie de jogo em que era admirada pelos pratos que cozinhava e, simultaneamente, alvo de inveja e de desconsideração. Suportava tudo com um sorriso, como se compreendesse o alcance da expressão "natureza humana".
Os meus irmãos comovem-se ao lembrar a 'gentillesse' da massa tenra e a arte suprema representada pelo seu arroz de pato, uma obra paciente e memorável. Eu recordo — além de tudo isso – o ar guloso, a forma como as pupilas se dilatavam benignamente à hora das refeições, e até os seus juízos cheios de ironia sobre a cozinha das suas irmãs e cunhadas. Nesse mundo feminino, sem marido (que morreu elegante, ligeiramente magro, sem apetite) e sem obrigações diárias, ela fazia da cozinha um palácio prazenteiro e dedicado às grandes revelações que saíam dos fornos e das panelas. A tia Benedita nunca lhe perdoou ter ficado viúva mais cedo do que seria decente, apenas aos quarenta anos, quando um resto de juventude se manifesta em pequenas indecisões e entre as rugas do rosto; mas se havia culpas a atribuir, elas deviam calhar ao tio Duarte Miguel, que decidiu penar em África durante os anos de juventude, numa comissão, e contrair uma malária que o deixou fraco e imprestável para os grandes esforços do matrimónio.
O tio Alberto, seu sobrinho e gastrónomo de São Pedro de Arcos, insistia em visitá-la amiúde, diz-se que para obter alguma receita com que impressionar as suas visitas. Não era verdade. Um homem que recebe Don Álvaro Cunqueiro com ovos com chouriço e sardinhas fritas (o mestre galego achou sublimes ambas as coisas) não procura impressionar as visitas; procura antes conquistá-las, como é dever de todo o anfitrião; ovos com chouriço e sardinhas fritas são uma criação saborosa mas, servidas ao talento e ao apetite de Don Álvaro, são um gesto decisivo e condenado a ficar na memória.
in Revista Notícias Sábado – 3 Novembro 2007
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