A vida de botânico amador
Ao longo da minha vida de botânico amador, costumava percorrer os jardins das vizinhanças em busca de novidades. O meu trabalho de jardineiro, como expliquei antes, limita-se a deixar crescer as minhas memórias – as plantas, essas, são sempre as mesmas, desorganizadas, esperando pela sagração da Primavera e reconhecendo que há uma diferença entre as gerberas – apesar do nome – e as couves galegas – apesar da sua utilidade.
Também mencionei, vagamente, tanto o interesse como o desinteresse da minha família pelas coisas do jardim, e lembrei o desprezo a que o velho Doutor Homem votava os galdíolos de Ponte de Lima, chegando a oferecer moedas de dez tostões aos netos que arrancassem um maior número deles, às escondidas de Dona Ester. Esse era um momento esperado anualmente, e Dona Ester, minha mãe, acorria em defesa de gladíolos indefesos, que em tempos (ainda em vida da Tia Benedita) entraram no jardim em substituição dos lírios, brancos e arroxeados, que não tinham nada a ver com o livro de Erico Verissimo, um clássico nos anos sessenta, mas muito primário.
Das vidraças da pequena biblioteca de Ponte de Lima vê-se uma velha nespereira, frondosa e teimosa, que agora mostra os seus primeiros frutos, minúsculos e promissores. A Tia Benedita morreu perto dela, sentada à sua sombra, num Verão inclemente, incapaz de resistir à canícula e ao peso da idade, já depois da hora do seu chá – que naquele dia foi uma talhada de melancia. O meu avô costumava ler os jornais naquele lugar, durante o Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, sentava-se no muro de pedra, a poucos passos, como se meditasse sobre a grandiosidade dos seus ramos e as rugas do seu tronco, embora todos nós soubéssemos que apenas estava sentado. Estar sentado, nesses tempos, era uma actividade como outra qualquer.
Daqui se vê, portanto, que a nespereira não pode ser arrancada sem que nos seja, também, arrancada uma parte da história dos Homem, deste e dos outros séculos. Mesmo que ainda não existisse nespereira. Porque era lá que ela iria crescer. A Tia Benedita preferiria ter-se despedido de forma mais nobre, estou em crer – mas, por mim, não vejo que houvesse melhor: a sombra dúctil e tranquila da nespereira, o embalo daquela brisa quente e abafada de Ponte de Lima, empurrada das serras, a correria de crianças no relvado do outro lado da casa, um céu azul enevoado pelo calor de Agosto. Não há aqui romantismo literário: o retrato, se o leitor reconhece o Minho, é este. Nas suas orações a Tia Benedita pediu um mundo assim. Seria injusto apreciar apenas o seu fundamentalismo de católica minhota, habituada a procissões e às chagas de Cristo expostas na Semana Santa, ao incenso e ao frio das paredes das igrejas de Braga. Esse era o seu ritual. Mas a sua pobre sensibilidade de cumpridora de preceitos, muito literalista (acreditava em tudo o que levava o selo canónico, a pobre senhora), muito chegada aos cónegos da Sé, muito desconfiada da gramática que fintava ou não obedecia ao missal, fez dela uma peça de museu que divertia, discretamente, os Homem das novas gerações.
Estranhamente, eu era um Homem das “novas gerações”. Instalado em Moledo, faz-me falta essa nespereira que evoca os momentos mais íntimos e particulares da vida da família. As árvores que rodeiam a casa de Moledo pouco se distinguem no meio dos pinheiros, que garantem sombra, estalidos nas suas ramagens empurrada pelo vento, perfume de resina e um parede contra as tempestades. No final da semana passada houve o tradicional almoço de Páscoa. Choveu mansamente. Fez sol mansamente. A minha sobrinha Maria Luísa anunciou que faria férias em meados de Junho, partindo para a Tailândia com uma amiga, mas que regressaria a Moledo a tempo de aproveitar a “estação balnear” e o toldo que religiosamente alugo durante a época.
“Quando vieres dessas praias da Tailândia, não vais querer saber de Moledo”, disse-lhe a mãe, minha irmã, que descobriu o feng shui, a meditação oriental, o ioga e, mais recentemente, a religião qualquer dos orixás.
“Verão sem Moledo dá azar”, respondeu ela. Acendeu-se no meu rosto, ao que me disseram, uma espantosa luz que se assemelha ao raio que anuncia as grandes revelações dos místicos. Nem a nespereira da Tia Benedita fica esquecida, nem o Verão de Moledo abandonado. O mundo tem esperança.
in Revista Notícias Sabado – 7 Abril 2007
Também mencionei, vagamente, tanto o interesse como o desinteresse da minha família pelas coisas do jardim, e lembrei o desprezo a que o velho Doutor Homem votava os galdíolos de Ponte de Lima, chegando a oferecer moedas de dez tostões aos netos que arrancassem um maior número deles, às escondidas de Dona Ester. Esse era um momento esperado anualmente, e Dona Ester, minha mãe, acorria em defesa de gladíolos indefesos, que em tempos (ainda em vida da Tia Benedita) entraram no jardim em substituição dos lírios, brancos e arroxeados, que não tinham nada a ver com o livro de Erico Verissimo, um clássico nos anos sessenta, mas muito primário.
Das vidraças da pequena biblioteca de Ponte de Lima vê-se uma velha nespereira, frondosa e teimosa, que agora mostra os seus primeiros frutos, minúsculos e promissores. A Tia Benedita morreu perto dela, sentada à sua sombra, num Verão inclemente, incapaz de resistir à canícula e ao peso da idade, já depois da hora do seu chá – que naquele dia foi uma talhada de melancia. O meu avô costumava ler os jornais naquele lugar, durante o Verão. O velho Doutor Homem, meu pai, sentava-se no muro de pedra, a poucos passos, como se meditasse sobre a grandiosidade dos seus ramos e as rugas do seu tronco, embora todos nós soubéssemos que apenas estava sentado. Estar sentado, nesses tempos, era uma actividade como outra qualquer.
Daqui se vê, portanto, que a nespereira não pode ser arrancada sem que nos seja, também, arrancada uma parte da história dos Homem, deste e dos outros séculos. Mesmo que ainda não existisse nespereira. Porque era lá que ela iria crescer. A Tia Benedita preferiria ter-se despedido de forma mais nobre, estou em crer – mas, por mim, não vejo que houvesse melhor: a sombra dúctil e tranquila da nespereira, o embalo daquela brisa quente e abafada de Ponte de Lima, empurrada das serras, a correria de crianças no relvado do outro lado da casa, um céu azul enevoado pelo calor de Agosto. Não há aqui romantismo literário: o retrato, se o leitor reconhece o Minho, é este. Nas suas orações a Tia Benedita pediu um mundo assim. Seria injusto apreciar apenas o seu fundamentalismo de católica minhota, habituada a procissões e às chagas de Cristo expostas na Semana Santa, ao incenso e ao frio das paredes das igrejas de Braga. Esse era o seu ritual. Mas a sua pobre sensibilidade de cumpridora de preceitos, muito literalista (acreditava em tudo o que levava o selo canónico, a pobre senhora), muito chegada aos cónegos da Sé, muito desconfiada da gramática que fintava ou não obedecia ao missal, fez dela uma peça de museu que divertia, discretamente, os Homem das novas gerações.
Estranhamente, eu era um Homem das “novas gerações”. Instalado em Moledo, faz-me falta essa nespereira que evoca os momentos mais íntimos e particulares da vida da família. As árvores que rodeiam a casa de Moledo pouco se distinguem no meio dos pinheiros, que garantem sombra, estalidos nas suas ramagens empurrada pelo vento, perfume de resina e um parede contra as tempestades. No final da semana passada houve o tradicional almoço de Páscoa. Choveu mansamente. Fez sol mansamente. A minha sobrinha Maria Luísa anunciou que faria férias em meados de Junho, partindo para a Tailândia com uma amiga, mas que regressaria a Moledo a tempo de aproveitar a “estação balnear” e o toldo que religiosamente alugo durante a época.
“Quando vieres dessas praias da Tailândia, não vais querer saber de Moledo”, disse-lhe a mãe, minha irmã, que descobriu o feng shui, a meditação oriental, o ioga e, mais recentemente, a religião qualquer dos orixás.
“Verão sem Moledo dá azar”, respondeu ela. Acendeu-se no meu rosto, ao que me disseram, uma espantosa luz que se assemelha ao raio que anuncia as grandes revelações dos místicos. Nem a nespereira da Tia Benedita fica esquecida, nem o Verão de Moledo abandonado. O mundo tem esperança.
in Revista Notícias Sabado – 7 Abril 2007
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