O isqueiro na gaveta
O velho Doutor Homem, meu pai, não usava isqueiro desde que o lembraram de que tinha de passar a pagar o respectivo imposto. Nessa altura guardou o seu Ronson na gaveta, um saudoso Double Decker, modelo de 1936, a gasolina, e passou a acender os seus cigarros com fósforos fabricados em Espinho ou trazidos de Vigo, de uma loja de "ultramarinos". Ele achava que o Dr. Salazar tratava o país como um filho de tenra idade, necessitado de amparo e protecção, razão porque a pátria definhava moralmente, entregue aos cuidados do antigo salvador. Ditador por ditador, o causídico suportava os estrangeiros, porque não o maçavam com tanta frequência, o que o levava a pensar que El Ferrol era preferível a Santa Comba, e ia mais vezes a Vigo comer ostras do que a Coimbra venerar as ruelas de empedrado. Em El Ferrol tinha também nascido Gonzalo Torrente Ballester, e a Santa Comba não conhecia vantagens suplementares.
Esta ideia de que o país tinha de ser cuidado como uma criança era ensinada desde cedo. O país portava-se mal, o país era pobre ou remediado como um fato de cheviote. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que isso era conversa de mestre-escola e ele desconfiava, por esta mesma ordem, de quem tratava os outros como relapsos, de quem queria salvar o mundo da perdição ou da maldade, de quem mudava frequentemente de carro e de quem ia à missa todos os dias. Assim se resumia o seu espírito conservador, céptico em relação ao entusiasmo da época – que se meneava, feliz, diante do professor de Coimbra –, céptico em relação à salvação do mundo, e céptico – finalmente – acerca da bondade natural ou original da raça. Ele achava que a única coisa que um cavalheiro devia prezar, realmente, era a possibilidade de acender o pavio do Ronson Double Decker sem que o incomodassem com impostos e a exigência de licença de isqueiro. Impossibilitado de o fazer, servia-se dele, quando o retirava da gaveta, para mostrar como o país fora transformado numa mercearia amesquinhada ou apenas velhaca.
As desilusões que o animaram até ao final da vida nasceram desta incompatibilidade com as autoridades e com o Dr. Salazar que, tirando ser um excelente orador, podia com vantagem ser substituído (achava ele) por "um homem com mais mundo". O meu pai era, como advogado, um saudoso da grande oratória; como cidadão, limitava-se ao essencial, acreditando – assim ele imaginava que devia ser um cavalheiro – que havia mais vida para além da política e da direcção da pátria. Cinquenta anos depois, compreendo as suas excentricidades na época, só possíveis porque tinha uma boa carteira de clientes no escritório, o que, poupando-lhe dissabores, não evitava contrariedades ao seu espírito generoso e dócil.
Mas a verdade é que o país gosta de malandros. Gosta de pantomineiros e desculpa-lhes tudo. O país gosta de apreciar, nos outros, as mesmas faltas de carácter que o distinguem. Tal como as mulheres dos romances libertinos, que preferiam os canalhas, porque eram mais sedutores embora lhes ensinassem apenas o caminho da desgraça, o país também prefere os pantomineiros, creio que pensando que a vida fica mais airosa e divertida com a sua presença. Os pantomineiros, por seu lado, ficam encantados com a possibilidade de cuidarem da vida do país porque isso lhes permite algum crédito na eternidade.
Há algumas excepções a este espírito, quase sempre reservadas para momentos solenes – nessas alturas a pátria é severa, quer ordem nas ruas, fica ligeiramente aborrecida, e tem saudades do Dr. Salazar. O fenómeno não é original e a pátria também já tinha saudades do Dr. Salazar antes de o Dr. Salazar ocupar o posto de presidente do Conselho. Ele apenas ocupou um lugar vazio e disponível.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que esta saudade do ditador é um problema político. Geralmente, deixo passar esses momentos de indignação. O velho Doutor Homem, meu pai, limitou-se a guardar o isqueiro e a não o usar, para não ceder a uma exagerada intromissão do Estado na vida dos cidadãos. Portugal está cheio de réplicas do Dr. Salazar. Não vale a pena lutar contra os fantasmas. Seria necessário, primeiro, ter a coragem de metê-los na gaveta.
in Revista Notícias Sábado - 21 Abril 2007
Esta ideia de que o país tinha de ser cuidado como uma criança era ensinada desde cedo. O país portava-se mal, o país era pobre ou remediado como um fato de cheviote. O velho Doutor Homem, meu pai, achava que isso era conversa de mestre-escola e ele desconfiava, por esta mesma ordem, de quem tratava os outros como relapsos, de quem queria salvar o mundo da perdição ou da maldade, de quem mudava frequentemente de carro e de quem ia à missa todos os dias. Assim se resumia o seu espírito conservador, céptico em relação ao entusiasmo da época – que se meneava, feliz, diante do professor de Coimbra –, céptico em relação à salvação do mundo, e céptico – finalmente – acerca da bondade natural ou original da raça. Ele achava que a única coisa que um cavalheiro devia prezar, realmente, era a possibilidade de acender o pavio do Ronson Double Decker sem que o incomodassem com impostos e a exigência de licença de isqueiro. Impossibilitado de o fazer, servia-se dele, quando o retirava da gaveta, para mostrar como o país fora transformado numa mercearia amesquinhada ou apenas velhaca.
As desilusões que o animaram até ao final da vida nasceram desta incompatibilidade com as autoridades e com o Dr. Salazar que, tirando ser um excelente orador, podia com vantagem ser substituído (achava ele) por "um homem com mais mundo". O meu pai era, como advogado, um saudoso da grande oratória; como cidadão, limitava-se ao essencial, acreditando – assim ele imaginava que devia ser um cavalheiro – que havia mais vida para além da política e da direcção da pátria. Cinquenta anos depois, compreendo as suas excentricidades na época, só possíveis porque tinha uma boa carteira de clientes no escritório, o que, poupando-lhe dissabores, não evitava contrariedades ao seu espírito generoso e dócil.
Mas a verdade é que o país gosta de malandros. Gosta de pantomineiros e desculpa-lhes tudo. O país gosta de apreciar, nos outros, as mesmas faltas de carácter que o distinguem. Tal como as mulheres dos romances libertinos, que preferiam os canalhas, porque eram mais sedutores embora lhes ensinassem apenas o caminho da desgraça, o país também prefere os pantomineiros, creio que pensando que a vida fica mais airosa e divertida com a sua presença. Os pantomineiros, por seu lado, ficam encantados com a possibilidade de cuidarem da vida do país porque isso lhes permite algum crédito na eternidade.
Há algumas excepções a este espírito, quase sempre reservadas para momentos solenes – nessas alturas a pátria é severa, quer ordem nas ruas, fica ligeiramente aborrecida, e tem saudades do Dr. Salazar. O fenómeno não é original e a pátria também já tinha saudades do Dr. Salazar antes de o Dr. Salazar ocupar o posto de presidente do Conselho. Ele apenas ocupou um lugar vazio e disponível.
A minha sobrinha Maria Luísa acha que esta saudade do ditador é um problema político. Geralmente, deixo passar esses momentos de indignação. O velho Doutor Homem, meu pai, limitou-se a guardar o isqueiro e a não o usar, para não ceder a uma exagerada intromissão do Estado na vida dos cidadãos. Portugal está cheio de réplicas do Dr. Salazar. Não vale a pena lutar contra os fantasmas. Seria necessário, primeiro, ter a coragem de metê-los na gaveta.
in Revista Notícias Sábado - 21 Abril 2007
<< Home