Recordações de família
Recordo a casa do tio Alberto em São Pedro de Arcos como um casarão rodeado de heras e de videiras, albergando soalhos macilentos e umas cómodas de antepassados que viveram sempre no Minho. De Ponte de Lima até lá seguia-se por uma estrada que lembrava, pobre literato que sou, todas as paisagens melancólicas da minha idade adulta.
A derradeira viagem do tio Alberto por essas estradas pedregosas e pelas curvas que desabavam em hortas ou em ribeiros que desapareciam entre silvados, foi em Abril de 1968. A mobília e a biblioteca foram para Ponte de Lima; os documentos, papéis catalogados ou dispersos, seguiram para o Porto, onde o velho doutor Homem, meu pai, os guardou como um tesouro familiar. Passados cinco ou seis anos, os papéis do tio Alberto ainda não tinham sido abertos nem catalogados e nunca houve necessidade de o fazer. A casa de São Pedro de Arcos foi vendida na época e depois tornada irreconhecível: as varandas alteradas, os telhados substituídos, as roseiras de Santa Teresinha arrancadas. Com o tempo, sobreviveram algumas fotografias juntamente com a imagem descolorida do próprio tio Alberto, que fora - no seu tempo e talvez ainda hoje - um modelo de elegância, o mais alto dos quatro irmãos e o mais aventureiro deles.
Já expliquei, com a reserva de intimidade que o assunto merece, que a sua biografia foi marcada, paredes dentro, pela sua paixão por uma princesa russa que não era bem russa, e que tantas preocupações causou na alma da tia Benedita, ocupada em resistir - a partir de Ponte de Lima - ao bolchevismo e à devassidão que ameaçava contaminar parte da família. O tio Alberto, de alguma forma, era para nós o que a fama do Cid fora para os antepassados de Atães e da Maia, tirando que o nosso Cid não era pio como o das narrativas de outros tempos, mas ligeiramente mundano durante metade do ano - a do Verão sobretudo -, reservando a temperança para os seus trabalhos académicos e para o trabalho propriamente dito.
Dona Ester, minha mãe, que pensava que eu era demasiado tranquilo para a velocidade e para o fulgor das coisas do meu tempo, lembrou várias vezes que a minha condição de celibatário não era uma originalidade na família, se bem que eu não a aproveitasse bem. Sem nunca o dizer claramente, dona Ester sugeriu que eu deveria divertir-me mais, até chegar a altura - a maturidade plena - em que o casamento me seria servido como um tranquilizante.
O tio Alberto nunca necessitou desse tranquilizante. As suas aventuras e viagens faziam-no esquecer a penalização vivida entre papéis, pareceres jurídicos, monografias regionais e uma colecção de alfarrábios dedicados à gastronomia galega, dois deles disputados em tempos (creio que em Vigo) com Don Álvaro Cunqueiro, na altura em que o seu 'La Cocina Cristiana de Occidente' (de que há, naturalmente, um exemplar na casa de Moledo) era o guia espiritual dos gastrónomos, uma espécie de catálogo e genealogia do pecado culinário no Noroeste peninsular, acrescentado pelo Ia ‘Cocina Galega'. A disputa com Don Álvaro Cunqueiro dizia respeito à colecção de notas recolhidas por José Maria de Puga y Parga antes de escrever o seu clássico 'La Cocina Práctica' e o elementar '56 Maneras de Guisar el Bacalao'.
Essas notas nunca foram encontradas, mas a memória da disputa tornou-se uma das glórias da família, maior do que a honra de o tio Álvaro ter servido a Camilo José Cela, numa certa Primavera minhota, ensolarada e modorrenta, um almoço de sardinhas assadas, ovos com chouriço e lampreia à bordalesa. Ao contrário de Cunqueiro e de Puga y Parga (que chegou a rondar os 200 quilos), o tio Alberto era elegante e atribuía isso ao desgaste produzido pelas suas viagens de Verão. Quando, nesses dois anos de paixão oriental, regressava - à primeira luz de Outono - das margens do Cáspio, o velho doutor Homem, meu pai, arrastava o irmão para confissões apenas permitidas no silêncio da biblioteca, o seu escritório doméstico na casa de família portuense. Ele suspeitava de que o tio Alberto ficara seduzido pelo caviar.
in Revista Notícias Sábado – 14 Abril 2007
A derradeira viagem do tio Alberto por essas estradas pedregosas e pelas curvas que desabavam em hortas ou em ribeiros que desapareciam entre silvados, foi em Abril de 1968. A mobília e a biblioteca foram para Ponte de Lima; os documentos, papéis catalogados ou dispersos, seguiram para o Porto, onde o velho doutor Homem, meu pai, os guardou como um tesouro familiar. Passados cinco ou seis anos, os papéis do tio Alberto ainda não tinham sido abertos nem catalogados e nunca houve necessidade de o fazer. A casa de São Pedro de Arcos foi vendida na época e depois tornada irreconhecível: as varandas alteradas, os telhados substituídos, as roseiras de Santa Teresinha arrancadas. Com o tempo, sobreviveram algumas fotografias juntamente com a imagem descolorida do próprio tio Alberto, que fora - no seu tempo e talvez ainda hoje - um modelo de elegância, o mais alto dos quatro irmãos e o mais aventureiro deles.
Já expliquei, com a reserva de intimidade que o assunto merece, que a sua biografia foi marcada, paredes dentro, pela sua paixão por uma princesa russa que não era bem russa, e que tantas preocupações causou na alma da tia Benedita, ocupada em resistir - a partir de Ponte de Lima - ao bolchevismo e à devassidão que ameaçava contaminar parte da família. O tio Alberto, de alguma forma, era para nós o que a fama do Cid fora para os antepassados de Atães e da Maia, tirando que o nosso Cid não era pio como o das narrativas de outros tempos, mas ligeiramente mundano durante metade do ano - a do Verão sobretudo -, reservando a temperança para os seus trabalhos académicos e para o trabalho propriamente dito.
Dona Ester, minha mãe, que pensava que eu era demasiado tranquilo para a velocidade e para o fulgor das coisas do meu tempo, lembrou várias vezes que a minha condição de celibatário não era uma originalidade na família, se bem que eu não a aproveitasse bem. Sem nunca o dizer claramente, dona Ester sugeriu que eu deveria divertir-me mais, até chegar a altura - a maturidade plena - em que o casamento me seria servido como um tranquilizante.
O tio Alberto nunca necessitou desse tranquilizante. As suas aventuras e viagens faziam-no esquecer a penalização vivida entre papéis, pareceres jurídicos, monografias regionais e uma colecção de alfarrábios dedicados à gastronomia galega, dois deles disputados em tempos (creio que em Vigo) com Don Álvaro Cunqueiro, na altura em que o seu 'La Cocina Cristiana de Occidente' (de que há, naturalmente, um exemplar na casa de Moledo) era o guia espiritual dos gastrónomos, uma espécie de catálogo e genealogia do pecado culinário no Noroeste peninsular, acrescentado pelo Ia ‘Cocina Galega'. A disputa com Don Álvaro Cunqueiro dizia respeito à colecção de notas recolhidas por José Maria de Puga y Parga antes de escrever o seu clássico 'La Cocina Práctica' e o elementar '56 Maneras de Guisar el Bacalao'.
Essas notas nunca foram encontradas, mas a memória da disputa tornou-se uma das glórias da família, maior do que a honra de o tio Álvaro ter servido a Camilo José Cela, numa certa Primavera minhota, ensolarada e modorrenta, um almoço de sardinhas assadas, ovos com chouriço e lampreia à bordalesa. Ao contrário de Cunqueiro e de Puga y Parga (que chegou a rondar os 200 quilos), o tio Alberto era elegante e atribuía isso ao desgaste produzido pelas suas viagens de Verão. Quando, nesses dois anos de paixão oriental, regressava - à primeira luz de Outono - das margens do Cáspio, o velho doutor Homem, meu pai, arrastava o irmão para confissões apenas permitidas no silêncio da biblioteca, o seu escritório doméstico na casa de família portuense. Ele suspeitava de que o tio Alberto ficara seduzido pelo caviar.
in Revista Notícias Sábado – 14 Abril 2007
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