A vida privada, ou a Holanda
A minha sobrinha Maria Luísa sugeriu, atrevida, que na Holanda se fumava bastante haxixe. A frase foi casual, proferida enquanto ajudava a pôr a cozinha em ordem. Não mne espanta: parece que durante o Verão, sobretudo, os meus sobrinhos se dedicam (ao fundo do pinhal) a cerimónias rituais para fumar haxixe, sob o pretexto de respirar o ar fresco das árvores ou apreciar a vegetação que tem crescido ao acaso – acrescentando a possibilidade de, suponho, apreciar a proximidade do mar. Eu não sei bem como processa o “acto contemplativo” propriamente dito, crepuscular, e ignoro “o facto em si”; como responsável pelo pinhal, limito-me a dizer que é um lugar agradável que tem resistido a anos e anos de neblina, humidade e calor, onde passeio uma vez por outra e que parece ter por missão impedir que alguém construa uma casa nas redondezas para eu deixar de ver o mar ao fundo. Nada é por acaso.
A informação vale como um suplemento a todo o manancial de conversas que sucedeu à apresentação da nova namorada holandesa do meu sobrinho Pedro. A internacionalização da família é um avanço mas não é a primeira tentativa. Ao longo dos anos, os Homem ensaiaram ligações amorosas e sentimentais a outras paragens – Brasil, Rússia, Pérsia, Espanha (abundantemente), França (naturalmente) ou até à Suécia. A Holanda é um território novo.
De todas essas histórias que circulam na chamada tradição familiar resulta que os cavalheiros acabaram por regressar ao redil da Pátria e à pobre intimidade da vida para cá das fronteiras. A Tia Benedita aguardava-os. Ou, então, quando a matriarca já não se encontrava entre nós, restava ao velho Doutor Homem, meu pai, consolá-los. Ou consolar-me, quando fui eu o protagonista.
Eram duas posições diversas e opostas acerca do problema: a Tia Benedita achava que lá fora estava um demónio disposto a perder-nos entre comunismo, luteranismo, devassidão e, pior, mulheres que falavam línguas estranhas que não se entendiam em Ponte de Lima; o velho Doutor Homem era francamente pela internacionalização, que achava um passo decisivo no caminho da civilização e da felicidade. Dona Ester, minha mãe, tentava remediar esse mundo onde a vagabundagem sentimental e os seus desastres causavam feridas inúteis e desprezíveis. Alguém tinha de manter um mínimo razoável de senso.
Nesse conflito surdo a propósito da história sentimental da família nunca se invocaram as pequenas contrariedades que o assunto causava portas dentro. A liberdade, costumava dizer o velho Doutor Homem, meu pai, é o lado de dentro da porta – o que significava que entre nós tudo estaria bem desde que não se exagerasse nos comentários. Ou seja: “o que não conheço, não existe”.
Hoje em dia diz-se bastante mal do “tabu”. Eu acho o “tabu” uma coisa apreciável e benéfica, independentemente da opinião que coloca a “civilização judaico-cristã” nas ruas da amargura, carregada de pecados e de traumatismos. Acho benéficos os tabus sobre o sexo e os desastres familiares, por exemplo – eles são a linha que delimita aquilo que é público daquilo que é estritamente privado. E, mesmo de entre as coisas que são estritamente privadas, há assuntos que só se comentam com algum esforço. Raramente comento a vida dos meus sobrinhos, tirando umas distracções a propósito de maneiras à mesa ou de leituras mal feitas.
Dona Elaine, a governanta de Moledo, não acha nada disto – ela supõe, como razoável observadora das nossas vidas, que há por aqui ciúme “da holandesa”. Ora, depois do almoço de há quinze dias, “a holandesa” (ela é a nova namorada do meu sobrinho Pedro) deixou um rasto de novidade que se assemelhou a um ligeiro escândalo. Isso acontece de tempos a tempos na vida das famílias. A minha sobrinha Maria Luísa achou-a expedita e alegre, o resto dos meus irmãos vê nela algumas possibilidades. São cálculos e expectativas. Na verdade, a chegada “da holandesa” constitui um suplemento de concorrência numa vida pacata e simples.
E eis como, mais tarde ou mais cedo, todos nos inspiramos na antiquíssima sabedoria da Tia Benedita.
in Revista Notícias Sábado – 24 Fevereiro 2007
A informação vale como um suplemento a todo o manancial de conversas que sucedeu à apresentação da nova namorada holandesa do meu sobrinho Pedro. A internacionalização da família é um avanço mas não é a primeira tentativa. Ao longo dos anos, os Homem ensaiaram ligações amorosas e sentimentais a outras paragens – Brasil, Rússia, Pérsia, Espanha (abundantemente), França (naturalmente) ou até à Suécia. A Holanda é um território novo.
De todas essas histórias que circulam na chamada tradição familiar resulta que os cavalheiros acabaram por regressar ao redil da Pátria e à pobre intimidade da vida para cá das fronteiras. A Tia Benedita aguardava-os. Ou, então, quando a matriarca já não se encontrava entre nós, restava ao velho Doutor Homem, meu pai, consolá-los. Ou consolar-me, quando fui eu o protagonista.
Eram duas posições diversas e opostas acerca do problema: a Tia Benedita achava que lá fora estava um demónio disposto a perder-nos entre comunismo, luteranismo, devassidão e, pior, mulheres que falavam línguas estranhas que não se entendiam em Ponte de Lima; o velho Doutor Homem era francamente pela internacionalização, que achava um passo decisivo no caminho da civilização e da felicidade. Dona Ester, minha mãe, tentava remediar esse mundo onde a vagabundagem sentimental e os seus desastres causavam feridas inúteis e desprezíveis. Alguém tinha de manter um mínimo razoável de senso.
Nesse conflito surdo a propósito da história sentimental da família nunca se invocaram as pequenas contrariedades que o assunto causava portas dentro. A liberdade, costumava dizer o velho Doutor Homem, meu pai, é o lado de dentro da porta – o que significava que entre nós tudo estaria bem desde que não se exagerasse nos comentários. Ou seja: “o que não conheço, não existe”.
Hoje em dia diz-se bastante mal do “tabu”. Eu acho o “tabu” uma coisa apreciável e benéfica, independentemente da opinião que coloca a “civilização judaico-cristã” nas ruas da amargura, carregada de pecados e de traumatismos. Acho benéficos os tabus sobre o sexo e os desastres familiares, por exemplo – eles são a linha que delimita aquilo que é público daquilo que é estritamente privado. E, mesmo de entre as coisas que são estritamente privadas, há assuntos que só se comentam com algum esforço. Raramente comento a vida dos meus sobrinhos, tirando umas distracções a propósito de maneiras à mesa ou de leituras mal feitas.
Dona Elaine, a governanta de Moledo, não acha nada disto – ela supõe, como razoável observadora das nossas vidas, que há por aqui ciúme “da holandesa”. Ora, depois do almoço de há quinze dias, “a holandesa” (ela é a nova namorada do meu sobrinho Pedro) deixou um rasto de novidade que se assemelhou a um ligeiro escândalo. Isso acontece de tempos a tempos na vida das famílias. A minha sobrinha Maria Luísa achou-a expedita e alegre, o resto dos meus irmãos vê nela algumas possibilidades. São cálculos e expectativas. Na verdade, a chegada “da holandesa” constitui um suplemento de concorrência numa vida pacata e simples.
E eis como, mais tarde ou mais cedo, todos nos inspiramos na antiquíssima sabedoria da Tia Benedita.
in Revista Notícias Sábado – 24 Fevereiro 2007
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