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O velho Doutor Homem, meu pai, considerava que só em casa se estava bem. Avesso a demasiados encontros sociais, fixando-se naqueles que eram estritamente necessários para que o mundo soubesse que continuava vivo e relativamente cordato, passava longas temporadas em casa. Nessa altura não havia televisão nem Internet, o telefone usava-se com a parcimónia da época, e – mesmo assim – o mundo existia com alguma notoriedade. Não era uma surpresa, de resto: havia jornais, processos nos tribunais e o clima ameno do Porto. Dos jornais lia-se tudo. O meu pai lia os pequenos anúncios de batata de semente e a necrologia das páginas de 'O Primeiro de Janeiro', se bem que se sentisse mais à vontade a comentar os editoriais da imprensa inglesa.
O fenómeno explica-se por isto: para não entrar em conflito com a Pátria, preferia julgar-se noutro país, de preferência numa Inglaterra que imaginava continuar igual à desses anos de antes da Guerra de 1939-45, onde os cavalheiros se vestiam para jantar e falavam em voz baixa e grave. Era o seu romantismo tardio. De modo que um editorial do 'Times' ou do 'Telegraph', apesar de ser lido com cerca de uma semana de atraso, ou mais, concedia-lhe um momento de liberdade quase absoluta, ilustrando-o (e a nós, que o ouvíamos) sobre as minudências discutidas nos Comuns, sobre os receios das chancelarias ou acerca da estreia de um espectáculo que nunca veríamos. Houve um ano em que discorreu mesmo sobre os títulos atribuídos por Sua Majestade, protestando com energia quando soube que um vetusto baronete de Suffolk, mais tarde visconde (não sei se de Andover), tinha sido agraciado com a Ordem da Jarreteira. "É como se promovessem o Leitão da Silva." Leitão da Silva era a forma generosa como, em circunstâncias mais alegres e irresponsáveis, os dois ou três membros mais letrados da família se referiam a Garrett.
Dona Elaine, a governanta de Moledo, que ignora a existência da Ordem da Jarreteira e nunca leu um soneto de Garrett, acha-me uma cópia – para pior, e desbotada - do velho doutor Homem, meu pai, culpando-me frequentemente de viver noutro mundo. Não por estas palavras, mas eu entendo a acusação. "O senhor doutor, com esta idade, ainda se surpreende." Ela refere-se aos meus ares de espanto acerca da vida dos meus sobrinhos e à sua vida sentimental. Ambos – eu e dona Elaine – sabemos que as coisas são como são, mas cabe-me manifestar algum espanto ou fingir certa surpresa. Nesta matéria, alguém tem de manter a pequena barreira da hipocrisia e a coragem de não deixar cair todos os tabus; pela idade, cabe-me a tarefa. Ninguém me leva a mal e a vida corre serenamente, encolhendo os ombros, relegando-me para o meu posto de matusalém minhoto, anterior à tragédia do 'Titanic' e aos romances de Carlos Malheiro Dias.
Num almoço de domingo, a visita da namorada do sobrinho Pedro foi o motivo da minha última actuação como guardião dos valores do século XIX anteriores ao Ultimatum: ela é holandesa. A nossa Holanda não é a terra visitada pela curiosidade de Ramalho Ortigão, que achava muitas virtudes no país dos pólderes, mas a tia Benedita não autorizaria a sua presença, recordando que um tio afastado (era escrivão e secretário nomeado pelo governo para Olinda) perecera nos arredores do Recife, assistindo à invasão dos Oranje e à traição de Domingos Fernandes Calabar. O almoço foi agradável e serviu para que a minha vaidade se atrevesse a comentar os museus de Amesterdão e a beleza da Frísia, sua terra natal (a falar verdade, a ilha de Ameland). Comentou-se que a holandesa me seduzira ou que eu me deixara seduzir pela jovem investigadora de biologia, que falava um português doce e soluçado, com o léxico no seu lugar.
Parece que a tinham convencido de que eu era o patriarca vigilante de uma família ultramontana que guarda e venera o retrato dos seus reis. Ah, se se soubesse a verdade! O Pedro está feliz e em breve, como suponho, aprenderá as primeiras palavras em neerlandês, porque os portugueses não podem ouvir uma língua que não se julguem, logo, talhados para se traduzirem nela. À despedida, Isabelle ainda me disse que a sua família gostaria muito de me conhecer por se interessam por assuntos de história. E de repente senti-me um conservador de museu, observado por frísios que vêm verificar como eram os contemporâneos do senhor príncipe Maurício de Nassau.
in Revista Notícias Sábado – 17 Fevereiro 2007
O fenómeno explica-se por isto: para não entrar em conflito com a Pátria, preferia julgar-se noutro país, de preferência numa Inglaterra que imaginava continuar igual à desses anos de antes da Guerra de 1939-45, onde os cavalheiros se vestiam para jantar e falavam em voz baixa e grave. Era o seu romantismo tardio. De modo que um editorial do 'Times' ou do 'Telegraph', apesar de ser lido com cerca de uma semana de atraso, ou mais, concedia-lhe um momento de liberdade quase absoluta, ilustrando-o (e a nós, que o ouvíamos) sobre as minudências discutidas nos Comuns, sobre os receios das chancelarias ou acerca da estreia de um espectáculo que nunca veríamos. Houve um ano em que discorreu mesmo sobre os títulos atribuídos por Sua Majestade, protestando com energia quando soube que um vetusto baronete de Suffolk, mais tarde visconde (não sei se de Andover), tinha sido agraciado com a Ordem da Jarreteira. "É como se promovessem o Leitão da Silva." Leitão da Silva era a forma generosa como, em circunstâncias mais alegres e irresponsáveis, os dois ou três membros mais letrados da família se referiam a Garrett.
Dona Elaine, a governanta de Moledo, que ignora a existência da Ordem da Jarreteira e nunca leu um soneto de Garrett, acha-me uma cópia – para pior, e desbotada - do velho doutor Homem, meu pai, culpando-me frequentemente de viver noutro mundo. Não por estas palavras, mas eu entendo a acusação. "O senhor doutor, com esta idade, ainda se surpreende." Ela refere-se aos meus ares de espanto acerca da vida dos meus sobrinhos e à sua vida sentimental. Ambos – eu e dona Elaine – sabemos que as coisas são como são, mas cabe-me manifestar algum espanto ou fingir certa surpresa. Nesta matéria, alguém tem de manter a pequena barreira da hipocrisia e a coragem de não deixar cair todos os tabus; pela idade, cabe-me a tarefa. Ninguém me leva a mal e a vida corre serenamente, encolhendo os ombros, relegando-me para o meu posto de matusalém minhoto, anterior à tragédia do 'Titanic' e aos romances de Carlos Malheiro Dias.
Num almoço de domingo, a visita da namorada do sobrinho Pedro foi o motivo da minha última actuação como guardião dos valores do século XIX anteriores ao Ultimatum: ela é holandesa. A nossa Holanda não é a terra visitada pela curiosidade de Ramalho Ortigão, que achava muitas virtudes no país dos pólderes, mas a tia Benedita não autorizaria a sua presença, recordando que um tio afastado (era escrivão e secretário nomeado pelo governo para Olinda) perecera nos arredores do Recife, assistindo à invasão dos Oranje e à traição de Domingos Fernandes Calabar. O almoço foi agradável e serviu para que a minha vaidade se atrevesse a comentar os museus de Amesterdão e a beleza da Frísia, sua terra natal (a falar verdade, a ilha de Ameland). Comentou-se que a holandesa me seduzira ou que eu me deixara seduzir pela jovem investigadora de biologia, que falava um português doce e soluçado, com o léxico no seu lugar.
Parece que a tinham convencido de que eu era o patriarca vigilante de uma família ultramontana que guarda e venera o retrato dos seus reis. Ah, se se soubesse a verdade! O Pedro está feliz e em breve, como suponho, aprenderá as primeiras palavras em neerlandês, porque os portugueses não podem ouvir uma língua que não se julguem, logo, talhados para se traduzirem nela. À despedida, Isabelle ainda me disse que a sua família gostaria muito de me conhecer por se interessam por assuntos de história. E de repente senti-me um conservador de museu, observado por frísios que vêm verificar como eram os contemporâneos do senhor príncipe Maurício de Nassau.
in Revista Notícias Sábado – 17 Fevereiro 2007
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