As coisas da política
A família passou ao largo da Monarquia do Norte e das suas avarias, como passaria, mais tarde, despercebida noutras tempestades locais. Já expliquei, em tempos, como os Homem se converteram "a filósofos" (a expressão é do 'Eusébio Macário', de Camilo) e se desinteressaram pelas coisas da política. Não exactamente assim, mas de forma parecida: o velho doutor Homem, meu pai, nunca abandonou a sua rotineira perseguição, surda e cómica, ao lente de Coimbra, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra. Mas o espírito da intervenção dos Homem na política, esse, terminou com a tia Benedita, a matriarca da família a quem se deve a continuidade do espírito dos Homem de há dois e três séculos. Só ela se atreveria, se não estivesse em Ponte de Lima, a pendurar colchas à janela quando passou o desfile dos militares que proclamaram a Monarquia do Norte, que durou um mês chuvoso.
Há uma razão para as coisas serem assim. Esse "espírito de há dois e três séculos" e, portanto, as guerrilhas da tia Benedita explicavam-se, segundo o velho doutor Homem, meu pai, pelo facto de "agora se trabalhar mais". O que queria dizer, no fim de contas, que antes das escaramuças de Oitocentos os Homem viviam dos seus rendimentos e passavam bem. Júlio Dinis, ai de nós, falava do assunto nos 'Fidalgos', misto de romance e de panfleto que na família passou por ser obra cómica. Não era. Trata-se de uma tragédia sem consequências, que autorizou a substituição dos fidalgos do Cruzeiro e dos frades inactivos pelos baronatos e demagogos do seu tempo.
Deixemos, no entanto, que Júlio Dinis continue adormecido – ele pertence ao nosso modesto Olimpo literário na categoria das "ingenuidades". Tanto o meu avô como o meu pai se entregaram, disciplinadamente, aos negócios da família depois de terem descoberto que o mundo tinha mudado com o século. O meu avô (os seus contactos com os proprietários do Douro e com os negociantes do Porto transformaram-no num anglófilo por motivos profissionais) foi, durante uns tempos, confidente do dr. António Granjo – eram ambos gente de província, tinham sotaque e vestiam como os pais de antigamente, com colarinhos e ternos escuros, bengalas e chapéus de feltro de São João da Madeira. O velho doutor Homem, meu pai, achava que "o regime" não era a única solução – e só deixou de se encontrar com o dr. Cunha Leal depois de descobrir tardiamente que o exilado da Corunha tinha aí recebido Afonso Costa, o demagogo (que se deliciava a ver cinema nas salas locais com o antigo presidente Bernardino Machado). Os seus passos encontraram-se apenas mais uma vez, espiritualmente, quando o dr. Cunha Leal foi ao cemitério prestar uma última homenagem a Paiva Couceiro. Não escondo que Paiva Couceiro foi uma espécie de culpa permanente dos Homem durante mais de um quarto de século.
Abandonado à sua sorte, o homem foi um aventureiro que arrastou consigo, pelas terras de Trás-os-Montes e da Galiza, a penúria dos vencidos. Ele teria sido um dos últimos heróis da tia Benedita, se não se visse, à partida, que o seu combate estava destinado à humilhação. Com Afonso Costa ou com Sidónio, com Pimenta de Castro ou com "a situação", Portugal cá se arranjaria. Portugal cá se arranjou durante quase cinquenta anos, com medo das polícias da República (sempre desculpadas), primeiro, e "do regime", depois. Política para quê?
Independentemente da vontade do dr. Salazar, para quem não eram necessários mais políticos além dos que rodeavam o seu gabinete, um homem de bem evitava meter-se nesse mundo. Trabalhava, enriquecia, sustentava a família, evitava ter ambições. Era um desígnio medíocre e, em alguns casos, prejudicial à pátria, mas compreensível. Isto explica a razão de não haver muita gente disponível hoje em dia – e de, a havê-la, não se apresentar tão ilustre ou ilustrada como nos faz falta. Recentemente, dando conta destas inquietações à mesa de domingo, uma das minhas irmãs lembrou-se de que eu devia ser reconduzido ao meu estatuto: "O António, agora, deu-lhe para disparatar." Geralmente atribuo estas coisas ao clima.
in Revista Notícias Sábado – 3 Fevereiro 2007
Há uma razão para as coisas serem assim. Esse "espírito de há dois e três séculos" e, portanto, as guerrilhas da tia Benedita explicavam-se, segundo o velho doutor Homem, meu pai, pelo facto de "agora se trabalhar mais". O que queria dizer, no fim de contas, que antes das escaramuças de Oitocentos os Homem viviam dos seus rendimentos e passavam bem. Júlio Dinis, ai de nós, falava do assunto nos 'Fidalgos', misto de romance e de panfleto que na família passou por ser obra cómica. Não era. Trata-se de uma tragédia sem consequências, que autorizou a substituição dos fidalgos do Cruzeiro e dos frades inactivos pelos baronatos e demagogos do seu tempo.
Deixemos, no entanto, que Júlio Dinis continue adormecido – ele pertence ao nosso modesto Olimpo literário na categoria das "ingenuidades". Tanto o meu avô como o meu pai se entregaram, disciplinadamente, aos negócios da família depois de terem descoberto que o mundo tinha mudado com o século. O meu avô (os seus contactos com os proprietários do Douro e com os negociantes do Porto transformaram-no num anglófilo por motivos profissionais) foi, durante uns tempos, confidente do dr. António Granjo – eram ambos gente de província, tinham sotaque e vestiam como os pais de antigamente, com colarinhos e ternos escuros, bengalas e chapéus de feltro de São João da Madeira. O velho doutor Homem, meu pai, achava que "o regime" não era a única solução – e só deixou de se encontrar com o dr. Cunha Leal depois de descobrir tardiamente que o exilado da Corunha tinha aí recebido Afonso Costa, o demagogo (que se deliciava a ver cinema nas salas locais com o antigo presidente Bernardino Machado). Os seus passos encontraram-se apenas mais uma vez, espiritualmente, quando o dr. Cunha Leal foi ao cemitério prestar uma última homenagem a Paiva Couceiro. Não escondo que Paiva Couceiro foi uma espécie de culpa permanente dos Homem durante mais de um quarto de século.
Abandonado à sua sorte, o homem foi um aventureiro que arrastou consigo, pelas terras de Trás-os-Montes e da Galiza, a penúria dos vencidos. Ele teria sido um dos últimos heróis da tia Benedita, se não se visse, à partida, que o seu combate estava destinado à humilhação. Com Afonso Costa ou com Sidónio, com Pimenta de Castro ou com "a situação", Portugal cá se arranjaria. Portugal cá se arranjou durante quase cinquenta anos, com medo das polícias da República (sempre desculpadas), primeiro, e "do regime", depois. Política para quê?
Independentemente da vontade do dr. Salazar, para quem não eram necessários mais políticos além dos que rodeavam o seu gabinete, um homem de bem evitava meter-se nesse mundo. Trabalhava, enriquecia, sustentava a família, evitava ter ambições. Era um desígnio medíocre e, em alguns casos, prejudicial à pátria, mas compreensível. Isto explica a razão de não haver muita gente disponível hoje em dia – e de, a havê-la, não se apresentar tão ilustre ou ilustrada como nos faz falta. Recentemente, dando conta destas inquietações à mesa de domingo, uma das minhas irmãs lembrou-se de que eu devia ser reconduzido ao meu estatuto: "O António, agora, deu-lhe para disparatar." Geralmente atribuo estas coisas ao clima.
in Revista Notícias Sábado – 3 Fevereiro 2007
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