sábado, fevereiro 03, 2007

As coisas da política

A família passou ao largo da Monarquia do Norte e das suas avarias, como passaria, mais tarde, despercebida noutras tempestades locais. Já expliquei, em tempos, como os Homem se converteram "a filósofos" (a expressão é do 'Eusébio Macário', de Camilo) e se desinteressaram pelas coisas da polí­tica. Não exactamente assim, mas de forma parecida: o velho doutor Homem, meu pai, nunca abandonou a sua rotineira perseguição, surda e cómica, ao lente de Coimbra, sobretudo a partir do fim da Segunda Guerra. Mas o espírito da intervenção dos Homem na política, esse, terminou com a tia Benedita, a matriarca da família a quem se deve a continuidade do espírito dos Homem de há dois e três séculos. Só ela se atreveria, se não estivesse em Ponte de Lima, a pendurar colchas à janela quando passou o desfile dos militares que proclamaram a Monarquia do Norte, que durou um mês chuvoso.

Há uma razão para as coisas serem assim. Esse "espírito de há dois e três séculos" e, portanto, as guerrilhas da tia Benedita explicavam-se, segundo o velho doutor Homem, meu pai, pelo facto de "agora se trabalhar mais". O que queria dizer, no fim de contas, que antes das escaramuças de Oitocentos os Homem viviam dos seus rendimentos e passavam bem. Júlio Dinis, ai de nós, falava do assunto nos 'Fidalgos', misto de romance e de panfleto que na família passou por ser obra cómica. Não era. Trata-se de uma tragédia sem consequências, que autorizou a substituição dos fidalgos do Cruzeiro e dos frades inactivos pelos baronatos e demagogos do seu tempo.

Deixemos, no entanto, que Júlio Dinis continue adormecido – ele pertence ao nosso modesto Olimpo literário na categoria das "ingenuidades". Tanto o meu avô como o meu pai se entregaram, disciplinada­mente, aos negócios da família depois de terem descoberto que o mundo tinha mudado com o século. O meu avô (os seus con­tactos com os proprietários do Douro e com os negociantes do Porto transformaram-no num anglófilo por motivos profissionais) foi, durante uns tempos, confidente do dr. António Granjo – eram ambos gente de província, tinham sotaque e vestiam como os pais de antigamente, com colarinhos e ternos escuros, bengalas e chapéus de feltro de São João da Madeira. O velho doutor Homem, meu pai, achava que "o regime" não era a única solu­ção – e só deixou de se encontrar com o dr. Cunha Leal depois de descobrir tardiamente que o exilado da Corunha tinha aí recebido Afonso Costa, o demagogo (que se deliciava a ver cinema nas salas locais com o antigo presidente Bernardino Machado). Os seus passos encontraram-se apenas mais uma vez, espiritualmente, quando o dr. Cunha Leal foi ao cemitério prestar uma última homenagem a Paiva Couceiro. Não escondo que Paiva Couceiro foi uma espécie de culpa per­manente dos Homem durante mais de um quarto de século.

Abandonado à sua sorte, o homem foi um aventureiro que arrastou con­sigo, pelas terras de Trás-os-Montes e da Galiza, a penúria dos vencidos. Ele teria sido um dos últimos heróis da tia Benedita, se não se visse, à partida, que o seu combate estava destinado à humilhação. Com Afonso Costa ou com Sidónio, com Pimenta de Castro ou com "a situa­ção", Portugal cá se arranjaria. Portugal cá se arranjou durante quase cinquenta anos, com medo das polícias da República (sempre desculpadas), primeiro, e "do regi­me", depois. Política para quê?

Independentemente da vontade do dr. Salazar, para quem não eram necessários mais políticos além dos que rodeavam o seu gabinete, um homem de bem evitava meter-se nesse mundo. Trabalhava, enriquecia, sustentava a família, evitava ter ambiçõ­es. Era um desígnio medíocre e, em alguns casos, prejudicial à pátria, mas compreensível. Isto explica a razão de não haver muita gente disponível hoje em dia – e de, a havê-la, não se apresentar tão ilustre ou ilustrada como nos faz falta. Recentemente, dando conta destas inquietações à mesa de domingo, uma das minhas irmãs lembrou-se de que eu devia ser reconduzido ao meu estatuto: "O António, agora, deu-lhe para disparatar." Geralmente atribuo estas coisas ao clima.

in Revista Notícias Sábado – 3 Fevereiro 2007