A fotografias de animais
O dr. Bloch, que eu conheci no Brasil – Rio de Janeiro – durante a minha estada nos anos cinquenta, gostava de animais. Foi o caso mais espantoso de dedicação a animais; no caso, a um numeroso grupo de cães que povoava a sua luxuosa casa de quase magnata. Mais tarde, incluiu a fotografia dos seus cães num cartão-de-visita pessoal e, quando se popularizou a fotografia a cores, o retraio adquiriu vida própria. O postal familiar, que incluía o dr. Bloch, a esposa e os canídeos, regurgitava de vida. Praticamente, o postal – recebi alguns, por alturas do Natal – latia com uma generosidade impressionante, distribuído por várias raças e sons. Como estive instalado no Hotel Glória, a dois passos do seu escritório, observei várias vezes o espectáculo dos pequenos animais, obedientes, entrando e saindo do carro azul-escuro, em fila, afinados de voz, alinhados como um grupo de samba.
Eu tenho uma relação vulgar com os animais mas não pertenço ao grupo de aduladores ou excessivos amantes da fauna próxima da designação de "animal doméstico", como cães, gatos, canários, periquitos ou peixes coloridos. Durante algum tempo, compenetrado, assisti na televisão a documentários sobre "a vida selvagem", e acho que se tratou de um esforço honesto – vi répteis, mamíferos, insectos, peixes, tudo o que constitui prova de que existem outras espécies além da nossa, mas o tema não me comovia.
Há duas semanas, esta crónica foi ilustrada com uma fotografia de um cavalo. A primeira sensação foi de surpresa e a segunda a da necessidade de reparação, pelo menos à memória. Tenho pelos cavalos uma ternura marginal que relaciono com os ciganos que - estávamos nos anos cinquenta, sessenta - ocupavam um velho pinhal de Ponte de Lima, propriedade da família, mas onde estavam autorizados a pernoitar durante umas semanas de Inverno. O meu avô, nos intervalos da sua carreira de administrador de quintas do Douro, instalava-se no Alto Minho em busca do verde que não encontrava nas colinas de xisto e nas vinhas que descoloriam sazonalmente. Os cavalos que rondavam os muros dos pinhais limianos ficaram-me na memória. Na verdade, não sendo um entusiasta do contacto com os animais, nem sequer do chamado mundo dos animais, as suas fotografias ficaram-me sempre na memória a partir desse postal natalício em que a família do dr. Bloch se apresentava risonha e ruidosa, mas ligeiramente absurda.
É comum dizer-se que os amantes dos animais são pessoas em geral sensíveis, capazes de gestos generosos e de disponibilidade para a comunhão quase mística com a natureza; pessoalmente, acho que os amantes dos animais são, apenas, pessoas que gostam de animais. Daí até concluir que há nelas uma superioridade moral e mística sobre os botânicos ou os geólogos vai uma grande viagem – e cheia de atalhos. Na verdade, os animais de São Francisco de Assis, aos quais o santo devotava alguma dedicação, constituem uma metáfora religiosa acerca dos simples, dos humildes e desprovidos de inteligência; deles viria alguma lição contra a escolástica e a hipocrisia da época. A alegada e comentada misantropia dos Homem nunca buscou consolação na preferência pelos animais (ou na sua "simplicidade", que deveria ser tocante ou, pelo menos, comovente). Havia em casa dois gatos admitidos pelo velho doutor Homem, meu pai – permitiam-se-lhes certas liberdades e eram considerados parte da família, mas nunca foram fotografados para serem incluídos na galeria ou na genealogia domésticas.
A maior parte dos amantes de animais prefere-os aos seus semelhantes e eu compreendo o pessimismo natural acerca da nossa espécie, que produz guerras mundiais e acidentes na camada de ozono; evidentemente que se trata de animais domesticados, cordatos, habituados ao contacto com gente que anda sobre duas pernas, obedientes, alimentados e amansados (como se sabe, o "mundo animal" reserva as suas crueldades para bem longe dos seus protectores).
Não, não me comovem as fotografias de animais. Sei que eles existem e desejo-lhes uma vida feliz, preenchida e serena. São, bem vistas as coisas, votos mais ou menos universais.
in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006
Eu tenho uma relação vulgar com os animais mas não pertenço ao grupo de aduladores ou excessivos amantes da fauna próxima da designação de "animal doméstico", como cães, gatos, canários, periquitos ou peixes coloridos. Durante algum tempo, compenetrado, assisti na televisão a documentários sobre "a vida selvagem", e acho que se tratou de um esforço honesto – vi répteis, mamíferos, insectos, peixes, tudo o que constitui prova de que existem outras espécies além da nossa, mas o tema não me comovia.
Há duas semanas, esta crónica foi ilustrada com uma fotografia de um cavalo. A primeira sensação foi de surpresa e a segunda a da necessidade de reparação, pelo menos à memória. Tenho pelos cavalos uma ternura marginal que relaciono com os ciganos que - estávamos nos anos cinquenta, sessenta - ocupavam um velho pinhal de Ponte de Lima, propriedade da família, mas onde estavam autorizados a pernoitar durante umas semanas de Inverno. O meu avô, nos intervalos da sua carreira de administrador de quintas do Douro, instalava-se no Alto Minho em busca do verde que não encontrava nas colinas de xisto e nas vinhas que descoloriam sazonalmente. Os cavalos que rondavam os muros dos pinhais limianos ficaram-me na memória. Na verdade, não sendo um entusiasta do contacto com os animais, nem sequer do chamado mundo dos animais, as suas fotografias ficaram-me sempre na memória a partir desse postal natalício em que a família do dr. Bloch se apresentava risonha e ruidosa, mas ligeiramente absurda.
É comum dizer-se que os amantes dos animais são pessoas em geral sensíveis, capazes de gestos generosos e de disponibilidade para a comunhão quase mística com a natureza; pessoalmente, acho que os amantes dos animais são, apenas, pessoas que gostam de animais. Daí até concluir que há nelas uma superioridade moral e mística sobre os botânicos ou os geólogos vai uma grande viagem – e cheia de atalhos. Na verdade, os animais de São Francisco de Assis, aos quais o santo devotava alguma dedicação, constituem uma metáfora religiosa acerca dos simples, dos humildes e desprovidos de inteligência; deles viria alguma lição contra a escolástica e a hipocrisia da época. A alegada e comentada misantropia dos Homem nunca buscou consolação na preferência pelos animais (ou na sua "simplicidade", que deveria ser tocante ou, pelo menos, comovente). Havia em casa dois gatos admitidos pelo velho doutor Homem, meu pai – permitiam-se-lhes certas liberdades e eram considerados parte da família, mas nunca foram fotografados para serem incluídos na galeria ou na genealogia domésticas.
A maior parte dos amantes de animais prefere-os aos seus semelhantes e eu compreendo o pessimismo natural acerca da nossa espécie, que produz guerras mundiais e acidentes na camada de ozono; evidentemente que se trata de animais domesticados, cordatos, habituados ao contacto com gente que anda sobre duas pernas, obedientes, alimentados e amansados (como se sabe, o "mundo animal" reserva as suas crueldades para bem longe dos seus protectores).
Não, não me comovem as fotografias de animais. Sei que eles existem e desejo-lhes uma vida feliz, preenchida e serena. São, bem vistas as coisas, votos mais ou menos universais.
in Revista Notícias Sábado – 11 Novembro 2006
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