Uma breve história familiar
O meu bom avô tinha uma simpatia moderada pelo dr. Brito Camacho, a quem gabava a coragem e também o descaramento. Uma coisa andava perto da outra, como se sabe em política. O avô era um homem desiludido com os seus correligionários da idade adulta e, acreditando que o destino era o que era, não estava na disposição de se sacrificar pela coluna monárquica do Norte mais do que o admissível num homem da sua saúde física e mental. Vamos e venhamos, ele tivera a sua conta e continuava britânico, ou seja, para a mentalidade da época, um "traidor" à pátria que cantava 'A Portuguesa' e à que se pôs em bicos de pés para imaginar que salvava as fronteiras na altura do Ultimato. Um dos seus irmãos, que frequentava amiúde o Cabido portuense, achava que ele podia fazer mais; como se viu, não pôde. Por alturas do sidonismo, então, desistiu de tudo e continuou a fazer a sua vida porque tinha uma família numerosa para alimentar, tomando o caminho do Douro, privando com os ingleses que tinham ficado nas quintas e com os exportadores de vinho do Porto. Ele tinha um inglês perfeito para a época, invejável para um país que falava com vergonha dos seus sotaques e se deliciava com tudo o que era francês - pelo contrário, ele lia o Telegraph' ou o Times' com duas ou mais semanas de atraso (vinham, já usados, em pacotes, do Clube Inglês da Rua das Virtudes), o que não o impedia de se considerar súbdito dessa imprensa que escrevia ensaios sérios e densos na página dois e obituários sumptuosos que ressuscitariam qualquer um.
Descrente na Monarquia do Norte, que teria vida curta e marcada por um tom de pobre tragédia, o meu avô cruzou-se algumas vezes com António Granjo - como o velho doutor Homem, mais tarde, se encontrou com o dr. Cunha Leal, a quem visitava no seu exílio da Corunha, sob o pretexto de ir comer ostras passando por La Guardia - cuja morte o ajudou a caracterizar a sordidez do tempo. António Granjo vinha ao Norte e, a caminho de Trás-os-Montes, ficava no Porto por uns dias; o avô visitava-o para saber notícias. O velho radical, depois assassinado pela Guarda revoltosa, mudara bastante de ponto cardeal na bússola política e tornara-se um conservador cansado do excesso de republicanismo.
Quando o filho Domingos partiu para o Brasil em 1932, depois de um desgosto amoroso que resultou num casamento anulado à pressa (mas com antecedência suficiente a fim de não causar escândalo), o avô achou que tinha cumprido o essencial da sua vida: tinha uma família, guardava alguns hábitos de patriarca, deixara a política, enviuvara cedo, não enriquecera demasiado nos negócios e considerava o dr. Salazar um contabilista aceitável mas demasiado metido consigo mesmo. Ao contrário do doutor Homem, meu pai (que considerava as botas do dr. Salazar uma obra-prima da "Saville Road de Santa Comba Dão"), o meu avô teve - nas discussões domésticas - uma certa inclinação a apoiar o deve e haver do lente de Coimbra, mas desconfiava do seu celibato (é uma maneira de dizer) e daquela vida consagrada à dieta.
Os casamentos dos Homem foram sempre um mistério de solidez, razão por que há tantas histórias de celibato na família – ou de estroinice, como garantia a tia Benedita, a guardiã da fama miguelista de Ponte de Lima. Queria isso dizer que, ou havia casamento ou havia pecado – a opção era maniqueísta mas fez escola.
O meu tio Domingos regressou do Brasil aos sessenta anos, em 1971, e instalou-se numa quinta nos arredores de Afife (de onde se viam os pinhais que acompanhavam o rio até Freixieiro de Soutelo e Vila Praia de Âncora), cheia de estuque bem trabalhado e de vagos arabescos que disfarçavam as ruínas. Não casara no Brasil, mas, uma semana antes de mandar redigir e selar o seu testamento, confidenciou – eu era o seu advogado – que deixara descendência no Recife e que pretendia assumir as suas responsabilidades. O velho doutor Homem (meu pai), que conhecia os factos, guardou o segredo a pedido do irmão. Também meu tio conhecera, pois, o pecado. Apesar do seu ar resmungão, da sua sovinice, do seu receio de que lhe cobrassem "o imposto" para além do aceitável, ele soube, naquele gesto de simpatia e de honradez, reabilitar-se aos olhos da sua família, fosse ela qual fosse. O meu bom avô Álvaro teria ficado satisfeito.
in Revista Notícias Sábado – 21 Outubro 2006
Descrente na Monarquia do Norte, que teria vida curta e marcada por um tom de pobre tragédia, o meu avô cruzou-se algumas vezes com António Granjo - como o velho doutor Homem, mais tarde, se encontrou com o dr. Cunha Leal, a quem visitava no seu exílio da Corunha, sob o pretexto de ir comer ostras passando por La Guardia - cuja morte o ajudou a caracterizar a sordidez do tempo. António Granjo vinha ao Norte e, a caminho de Trás-os-Montes, ficava no Porto por uns dias; o avô visitava-o para saber notícias. O velho radical, depois assassinado pela Guarda revoltosa, mudara bastante de ponto cardeal na bússola política e tornara-se um conservador cansado do excesso de republicanismo.
Quando o filho Domingos partiu para o Brasil em 1932, depois de um desgosto amoroso que resultou num casamento anulado à pressa (mas com antecedência suficiente a fim de não causar escândalo), o avô achou que tinha cumprido o essencial da sua vida: tinha uma família, guardava alguns hábitos de patriarca, deixara a política, enviuvara cedo, não enriquecera demasiado nos negócios e considerava o dr. Salazar um contabilista aceitável mas demasiado metido consigo mesmo. Ao contrário do doutor Homem, meu pai (que considerava as botas do dr. Salazar uma obra-prima da "Saville Road de Santa Comba Dão"), o meu avô teve - nas discussões domésticas - uma certa inclinação a apoiar o deve e haver do lente de Coimbra, mas desconfiava do seu celibato (é uma maneira de dizer) e daquela vida consagrada à dieta.
Os casamentos dos Homem foram sempre um mistério de solidez, razão por que há tantas histórias de celibato na família – ou de estroinice, como garantia a tia Benedita, a guardiã da fama miguelista de Ponte de Lima. Queria isso dizer que, ou havia casamento ou havia pecado – a opção era maniqueísta mas fez escola.
O meu tio Domingos regressou do Brasil aos sessenta anos, em 1971, e instalou-se numa quinta nos arredores de Afife (de onde se viam os pinhais que acompanhavam o rio até Freixieiro de Soutelo e Vila Praia de Âncora), cheia de estuque bem trabalhado e de vagos arabescos que disfarçavam as ruínas. Não casara no Brasil, mas, uma semana antes de mandar redigir e selar o seu testamento, confidenciou – eu era o seu advogado – que deixara descendência no Recife e que pretendia assumir as suas responsabilidades. O velho doutor Homem (meu pai), que conhecia os factos, guardou o segredo a pedido do irmão. Também meu tio conhecera, pois, o pecado. Apesar do seu ar resmungão, da sua sovinice, do seu receio de que lhe cobrassem "o imposto" para além do aceitável, ele soube, naquele gesto de simpatia e de honradez, reabilitar-se aos olhos da sua família, fosse ela qual fosse. O meu bom avô Álvaro teria ficado satisfeito.
in Revista Notícias Sábado – 21 Outubro 2006
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