Acerca do arrependimento
O velho Doutor Homem, meu pai, chamava a atenção para os últimos dias cristãos de Guerra Junqueira e para a sua frase mais obtusa: "Eu nunca fui republicano." Meu avô, administrador de quintas do Douro, privou directamente com o poeta (que morreu em 1923), de quem decorou 'O Melro', como uma homenagem ao versejador, porque o conheceu, e ao bucolismo da região, porque o deixava comovido. Muitas vezes esperámos o velho administrador na estação de São Bento, regressando – ao fim de uma semana – do vale do Douro carregado de cabazes e de livros de contabilidade. A sua irmã Benedita, nossa tia Benedita, a Tia Benedita, nunca lhe desculpou a amizade com o poeta de Freixo e de Barca d'Alva, que ela considerava um modelo de ateísmo e um membro da Carbonária, par do doutor Afonso Costa e da República que prendeu os padres, e cuja conversão derradeira teria sido um dos primeiros milagres dos pastorinhos de Fátima.
O doutor Homem, meu pai, desinteressava-se do "assunto republicano" (ele teria sido um cartista do velho regime, como em tempos contei) mas achava Junqueira insuportável como bardo. Sempre que queria fazer rir a plateia, à mesa, recitava "eu não te tenho amor simplesmente. A paixão / Em mim não é amor; filha, é adoração!", como um exemplo que deveria figurar no Código Penal. Nessas alturas atribuía aos primeiros versos de 'O Melro' ("O melro, eu conheci-o: / Era negro, vibrante, luzidio, / Madrugador, jovial...") uma larguíssima quantidade de defeitos, excessivos e burlescos. 'A Velhice do Padre Eterno' nunca foi, mesmo assim, um livro proscrito paredes dentro, conquanto raramente tivesse sido folheado. Aconteceu com vários autores, mas não por razões morais – a maledicência dos Homem era mais implacável com questões de gramática do que com teogonias; o poeta Rufino, de 'Os Maias', seria desmantelado sem piedade. A certos versos de Garrett, ai dele, ocorreu sofrerem esse destino. Seja como for, havia nessa invocação de Guerra Junqueira uma ideia pouco generosa: precisamente, a de verificar o arrependimento do vate – ele que tinha sido visionário republicano, praticamente bombista e que, como o conde Tolstoi, pensou ser profeta.
Era certo que à reacção ultramontana mais aguerrida lhe faltava elegância e inteligência; o meu avô referia-se a eles como "uma espécie de bandidos e pistoleiros da serra da Gardunha". Mas se o arrependimento de Junqueira contava para a Tia Benedita como um sinal do poder divino e da sua infalibilidade política, o velho doutor Homem, meu pai, limitava-se a usá-lo como mais uma prova do movimento circular da História. Não o mostrava com o cinismo dos vencedores, mas com a circunspecção dos estóicos, que, além de não levantarem a voz mais do que o necessário, também não são obrigados a percorrer o caminho às avessas. Não há nada mais conservador do que isto, reconheço.
Em tempos, o doutor Soares, ainda Presidente da República e num dos seus arrebatamentos (ele falava numa universidade), decidiu que para se ser jovem era preciso fazer coisas de que mais tarde se arrependesse, como dar vivas a Lenine e defender o massacre das burguesias. Aí está um percurso cheio de incómodos que nunca soube compreender, nem nos Camisas Negras nem nos então barbudos da sociologia (que hoje são ministros e directores-gerais). Não sei o que pensam os rapazes quando se lhes sugere que sejam "jovens" porque, mais tarde, se hão-de arrepender gravemente, mas um resto de inteligência, ou de dignidade, há-de atingi-los como aconteceu com S. Paulo na estrada de Damasco.
A minha sobrinha ri-se e acha que são efeitos do Outono ou das minhas desilusões. Ela vota no Bloco de Esquerda quando o domingo de eleições não calha coincidir com o ameno e acolhedor Outono de Moledo. Explico-lhe, com alguma vaidade, certamente irritante, que não tenho desilusões em matéria política. E que essa é a vantagem de uma pessoa não temer a velhice enquanto julga que só os mais jovens sabem dançar. Ou seja: que não há nenhuma relação entre as ideias políticas e a chegada da osteoporose; apenas existem coisas que não merecem o esforço.
in Revista Notícias Sábado – 14 Outubro 2006
O doutor Homem, meu pai, desinteressava-se do "assunto republicano" (ele teria sido um cartista do velho regime, como em tempos contei) mas achava Junqueira insuportável como bardo. Sempre que queria fazer rir a plateia, à mesa, recitava "eu não te tenho amor simplesmente. A paixão / Em mim não é amor; filha, é adoração!", como um exemplo que deveria figurar no Código Penal. Nessas alturas atribuía aos primeiros versos de 'O Melro' ("O melro, eu conheci-o: / Era negro, vibrante, luzidio, / Madrugador, jovial...") uma larguíssima quantidade de defeitos, excessivos e burlescos. 'A Velhice do Padre Eterno' nunca foi, mesmo assim, um livro proscrito paredes dentro, conquanto raramente tivesse sido folheado. Aconteceu com vários autores, mas não por razões morais – a maledicência dos Homem era mais implacável com questões de gramática do que com teogonias; o poeta Rufino, de 'Os Maias', seria desmantelado sem piedade. A certos versos de Garrett, ai dele, ocorreu sofrerem esse destino. Seja como for, havia nessa invocação de Guerra Junqueira uma ideia pouco generosa: precisamente, a de verificar o arrependimento do vate – ele que tinha sido visionário republicano, praticamente bombista e que, como o conde Tolstoi, pensou ser profeta.
Era certo que à reacção ultramontana mais aguerrida lhe faltava elegância e inteligência; o meu avô referia-se a eles como "uma espécie de bandidos e pistoleiros da serra da Gardunha". Mas se o arrependimento de Junqueira contava para a Tia Benedita como um sinal do poder divino e da sua infalibilidade política, o velho doutor Homem, meu pai, limitava-se a usá-lo como mais uma prova do movimento circular da História. Não o mostrava com o cinismo dos vencedores, mas com a circunspecção dos estóicos, que, além de não levantarem a voz mais do que o necessário, também não são obrigados a percorrer o caminho às avessas. Não há nada mais conservador do que isto, reconheço.
Em tempos, o doutor Soares, ainda Presidente da República e num dos seus arrebatamentos (ele falava numa universidade), decidiu que para se ser jovem era preciso fazer coisas de que mais tarde se arrependesse, como dar vivas a Lenine e defender o massacre das burguesias. Aí está um percurso cheio de incómodos que nunca soube compreender, nem nos Camisas Negras nem nos então barbudos da sociologia (que hoje são ministros e directores-gerais). Não sei o que pensam os rapazes quando se lhes sugere que sejam "jovens" porque, mais tarde, se hão-de arrepender gravemente, mas um resto de inteligência, ou de dignidade, há-de atingi-los como aconteceu com S. Paulo na estrada de Damasco.
A minha sobrinha ri-se e acha que são efeitos do Outono ou das minhas desilusões. Ela vota no Bloco de Esquerda quando o domingo de eleições não calha coincidir com o ameno e acolhedor Outono de Moledo. Explico-lhe, com alguma vaidade, certamente irritante, que não tenho desilusões em matéria política. E que essa é a vantagem de uma pessoa não temer a velhice enquanto julga que só os mais jovens sabem dançar. Ou seja: que não há nenhuma relação entre as ideias políticas e a chegada da osteoporose; apenas existem coisas que não merecem o esforço.
in Revista Notícias Sábado – 14 Outubro 2006
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