sábado, outubro 28, 2006

A velha província

Há, na história da família, uma guerra surda que se trava nos corredores da memória sempre que alguém menciona a palavra "liberal". São evocações de outros tempos, que têm dois termos. O primeiro deles em Évora Monte, Maio de 1834, onde se assina a capitulação e se anuncia o fim da guerra civil (uma parte da família menciona como mais importante o facto de o príncipe ter pernoitado em Alvalade ainda aclamado como rei); o segundo, mesmo que poucos o admitam de bom grado, acon­tece apenas em Agosto de 1938 quando José Joaquim de Sousa Reis, o Remexido, foi fuzilado às escondidas pelas auto­ridades, apesar do perdão da rainha. Malhas do império. O lei­tor que entende, entende. O leitor que não entende, pois que procure - porque o essencial está dito se acrescentar que na velha casa dos Homem, em Ponte de Lima, lá permanece, ao fundo de um corredor, uma muito razoável cópia do retrato do senhor D. Miguel (de que a tia Benedita me consagrou guardião, para meu desespero pessoal).

Já se vê como a palavra "liberal" ecoa dentro de paredes. Mas, com as estações do ano, a imprensa de mexericos e o comboio Lisboa-Porto, os Homem tornaram-se "filósofos". Retiro a igno­mínia do 'Eusébio Macário', em que Camilo usa a palavra para identificar os que se "adaptam" aos novos tempos sem ferir sus­ceptibilidades e sem se fatigarem à procura de melhores justifi­cações, desde que o baronato ou o sossego estivessem garan­tidos. No nosso caso, o baronato não veio, felizmente, mas o sossego vivia-se a espaços.

Seja como for, os Homem acabaram por não se envergonhar quando, numa parte da província gerida pelo dr. Salazar, eram tratados por "liberais"; queria dizer que o velho doutor Homem, meu pai, achava que o governo do prematuríssimo lente de Coimbra exorbitava nas suas funções e se metia onde não era chamado, desde princípios de economia doméstica até questões de moral. Um e outro assunto eram coisas de família, comentadas em surdina, boas para serem discutidas dentro de casa e não para serem avaliadas pelo cir­cunspecto dedo dos governos e dos regedores.

Evidentemente que a nossa pobre província não teorizava assim tanto – é imaginação minha, que o dr. Manuel Valente acha talhada para romancista – mas a designação "liberal" não era fortuita. Tanto se aplicava aos cos­tumes como às tendências políticas, coisas a que a família não ligava muito desde que a deixassem entregar-se, paulatinamen­te, aos negócios e à preguiça em simultâneo. A nossa pobre província, na verdade, era apenas pobre e insatisfeita; simples­mente, não o sabia – e também não sabia como era ignorante, preguiçosa e emproada, coisas que só se remedeiam com o tempo. Diante disto, o velho doutor Homem, meu pai, era um "liberal". Ou seja, não estava disposto a ser como a velha pro­víncia, ele que aprendera política pela cartilha dos conservado­res ingleses – o que era uma excentricidade num país que não tinha lordes, nem escolas, nem imprensa livre.

Passados estes anos, instalada na democracia, a velha provín­cia continua insatisfeita mas não sabe que é pobre. Falta-Ihe veemência e bom senso, continua pouco liberal e completa­mente enamorada pelas novidades do mundo, que aceita sem pestanejar.

Eu sou um velho minhoto e posso lamentar-me. Bastam-me os pinhais e a consciência de que cada Inverno que ultrapasso é uma vitória sobre o destino. Os meus sobrinhos mostram-me um mundo em que eu não poderia crescer, porque fui educado entre livros, autores, penumbras e desafios. À minha volta – durante os anos cinquenta e sessenta — o mundo inteiro vivia em turbulência; felizmente ou infelizmente, parte dessa turbulência passou por mim sem me contagiar. Os liberais de antigamente, de meados do século, que me educaram e tentaram ser ilustra­dos, cultos e tolerantes, seriam hoje gente mal adaptada. Também eles falharam. O mundo pertence aos bravos que fintam a história e triunfam episodicamente; simplesmente, não sabem que a vida é apenas um episódio.

in Revista Notícias Sábado – 28 Outubro 2006