sábado, novembro 18, 2006

Aprender a cismar

A minha sobrinha Maria Luísa pergunta-me, de vez em quando, ao chegar a casa com o 'Jornal de Notícias', como esco­lho eu os temas destas crónicas. Limito-me a dizer que são horas de almoçar, tentando levantar-me pela segunda vez do cadeirão mais perto da galeria de hibiscos, ao fundo da varanda, esconden­do o meu exemplar do jornal entre os almofadões, uma vez que me levanto cedo de mais para as horas modernas de hoje.

Aproveito as madrugadas de Outono não só para escrever estas crónicas mas também para acordar a horas de antigamente e matar sauda­des do tempo em que havia horas certas; dona Elaine, que há mais de vinte anos conhece o apetite matinal de torradas e de café de cevada, queixa-se amargamente das noites mal dormidas – ulti­mamente, refere os "bicos de papagaio", mas, antes disso, enume­ra os males da meteorologia e as incertezas do tempo. Por detrás da sua desfaçatez minhota, a governanta de Moledo é uma entu­siasta das conversas sobre o aquecimento global e o desconcerto do mundo, coisas que atribui, com algumas variações, ou à super­população (na sua linguagem, há gente a mais por todo o lado) ou ao excesso de carros na estrada que vai para Cerveira e Caminha.

Neste Verão, com uma irmã ainda brasileira (dona Elaine regres­sou do Rio de Janeiro ainda nova, há bastantes anos, para se ins­talar com as suas arrecadas numa aldeia dos arredores de Vila Nova de Cerveira - coisa que não conseguiu porque "tinha sauda­des de trabalhar"), foi passar uma semana à Madeira. Veio de lá inspirada e acreditou que a ilha, verde e mimosa, seria uma depen­dência do Minho de antigamente, colorido com paletas de um verde-escuro e intenso. Gabou as colinas e os precipícios, e pas­sou bem com a humidade, para ela um substituto amável do iodo das praias da sua província. Creio, pela conversa que escutei com uma das minhas irmãs, que visitou mesmo o casino do Funchal e se diver­tiu bastante. Numa das manhãs mais recentes animou-se a aconselhar-me mudança de ares: "O senhor doutor, em vez de estar aqui a cismar, devia era ir de viagem uma vez ou outra."

A ideia de que eu fico "aqui a cismar" é realmente uma novidade. No meu tempo da Madeira, onde me levou um navio cinquentão, cheio de ingleses e de asmáticos de várias nacionalidades, o Hotel Reids tinha acabado de se despedir de Churchill, e alimentavam-se muitas conversas sobre as aguarelas onde o velho 'tory' teria representado o verde madeiren­se e o colorido das suas colinas, além das libações de históricos verdelhos e malvasias. Cismei mais durante a viagem de barco do que nas penumbras tranquilizantes do Funchal, mas já lá vão mui­tos anos e não recordo bem os temas da época, tão amenos como a meteorologia local.

A minha sobrinha, que participou na conver­sa, acha que eu começaria a cismar mal atravessasse os eucalip­tais de Vila do Conde, afastando-me da minha biblioteca e do pobre jardim que o Outono está a desfolhar lentamente, mas ela sabe que não tem razão. O facto de saber que existe um mundo para lá de Santa Tecla e da Senhora da Agonia é um argumento para não me indispor contra os elementos ou contra as saudades de casa. Com surpresa minha, não cismo verdadeiramente. Limito-me a considerar as coisas como elas são, o que é uma desculpa tão pobre como qualquer outra.

Há quem atribua ao Outono uma gran­de percentagem de razões para começarmos a cismar, como se nos desfolhássemos com os plátanos e as videiras das colinas. Pessoalmente, limito-me a agasalhar-me, atitude que me tem pro­tegido bastante dos resfriados e da ameaça do reumatismo sazo­nal. Esta indiferença há-de parecer relativamente arrogante. A minha sobrinha perguntou-me se eu penso na morte. "Não cos­tumo cismar", respondi na altura. Penso apenas em gente como eu, dobrando os oitenta, caminhando pelo paredão diante do mar, dobrando as articulações e usando chapéu para se proteger do sol de Novembro; e penso que a idade de cismar passou numa das várias adolescências a que nos entregámos de alma e coração, no meio de uma paixão ou na falta dela.

O velho doutor Homem, meu pai, aconselhava chá de cidreira para todos os males, inclusive para a tendência de cismar. Por detrás daquela aparência de circunspecto cavalheiro do velho Porto escondia-se um sátiro que ironizava até sobre a existência de vida para lá da morte. A cidreira não era mais do que um vago perfume de eternidade.

in Revista Notícias Sábado – 18 Novembro 2006