A Pátria, eufórica
A falar verdade, os Homem nunca se recompuseram do golpe que foi terem de apreciar a bandeira portuguesa. Para os padrões actuais, empurrados pelo desvario do futebol, gostamos moderadamente da Pátria (ou gostámos -falo por mim e pelo velho doutor Homem, meu pai), apreciamos os seus símbolos, mas temos gosto. Gosto, ou seja, uma ideia do que é bom e mal para os olhos, os ouvidos ou as papilas, por exemplo. Quanto aos ouvidos, o hino é razoável e com uma história de ocasião, muito exagerada nos manuais de História, como se a Monarquia quisesse vender o País a Inglaterra e só os republicanos o quisessem salvar. Em matéria de olhos, a ideia da bandeira portuguesa é muito descomposta e, a bem do bom senso, não é muito agradável de ver. Se nunca a desrespeitámos, também não a elogiámos vezes suficientes para que se soubesse que a achávamos apresentável. Não é. Os países sérios deviam ter bandeiras discretas que inspirassem sentimentos nobres e, sobretudo, valores essenciais.
Seja como for, a bandeira leva-me ao assunto: o futebol é um fenómeno que me escapa, mas a culpa é exclusivamente minha. Rodeado de futebol por todos os lados, limitei-me a acompanhar a evolução da selecção nacional e, quando saio de casa, para atravessar as manhãs de Verão de Moledo e comprar os jornais do costume, a apreciar o renascimento periódico do patriotismo. Nós, que sempre fomos patriotas, estamos rodeados de patriotas superlativos dispostos a tudo para erguer a bandeira. É uma nova forma de patriotismo, reconheço. Pergunto-me o que aconteceria com as multidões que festejam cada vitória da selecção de futebol se estivessem colocadas diante do dilema de compreender ou de combater a invasão de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas. O estado de euforia levaria a absurdos incompatíveis com o bom senso requerido - mas vestiria a farda dourada do patriotismo com as suas quinas e castelos.
Infelizmente, os ventos da História arrasam os castelos de areia do patriotismo e transformam-no numa coisa obsoleta e arruinada. Quando o doutor Salazar ordenou às tropas que resistissem a todo o custo aos indianos, o mundo tinha já levado uma volta. Ficou bem, no retrato, a reacção honrosa - mas o resto do mundo "compreendia" a derrocada das potências coloniais e aguardava, por motivos estratégicos, que o meu país de então se desfizesse das possessões africanas e orientais. Por motivos que não vêm a esta crónica, a década de cinquenta foi decisiva para todos nós e antecipou os sinais do que viriam a ser os anos absurdos de sessenta. O velho doutor Homem, meu pai, encerrado o capítulo do assalto a Berlim no termo da Guerra, dobrou as folhas do 'Daily Telegraph' (recebido com mais de uma semana de atraso na Baixa do Porto) e disse a frase que na altura não ousei compreender: "Vamos, então, cuidar da porta de entrada." A sua relação com o ditador foi uma questão familiar permanente e duradoura, transformada em obsessão com o correr dos anos. Ele acreditava que o doutor Salazar, com o avançar da idade, poderia começar a não regular totalmente bem - e que o País estaria condenado a ficar caquético. Portanto, quanto mais cedo se livrasse dos fantasmas e dos sonhos de grandeza, mais rapidamente se vacinaria contra os males do século, entre os quais estava certamente o comunismo.
Esta maneira de pensar era tão absurda como qualquer outra, mas tinha um pouco a ver com a misantropia dos Homem; desde que os não preocupassem demasiado, a vida seguiria o seu caminho. Não seguiu, como se sabe. Hoje, somos uma velha família que se reúne aos domingos e durante o Verão para assinalar o indesmentível facto de que os anos passam mesmo que a selecção de futebol ganhe campeonatos ou seja humilhada pela derrota. Continuamos a pensar que estamos no centro do mundo (pelo menos do nosso, certamente), mesmo que entre os meus sobrinhos haja votantes no Bloco de Esquerda ou casamentos sem casamento. Limito-me a compreender tudo isso, e até a euforia das hordas futebolísticas - é um patriotismo da festa e não da abnegação. Trata-se da alegria de pertencer aos vencedores e por isso é menos questionável. Se as hordas fossem colocadas diante da inevitabilidade da perda de Goa e Diu, como depois de Angola e de Moçambique, até onde se ergueriam as nossas bandeiras? É esse o estranho valor do patriotismo, o de poder reagir solenemente diante das derrotas.
in Revista Notícias Sábado – 8 Julho 2006
Seja como for, a bandeira leva-me ao assunto: o futebol é um fenómeno que me escapa, mas a culpa é exclusivamente minha. Rodeado de futebol por todos os lados, limitei-me a acompanhar a evolução da selecção nacional e, quando saio de casa, para atravessar as manhãs de Verão de Moledo e comprar os jornais do costume, a apreciar o renascimento periódico do patriotismo. Nós, que sempre fomos patriotas, estamos rodeados de patriotas superlativos dispostos a tudo para erguer a bandeira. É uma nova forma de patriotismo, reconheço. Pergunto-me o que aconteceria com as multidões que festejam cada vitória da selecção de futebol se estivessem colocadas diante do dilema de compreender ou de combater a invasão de Goa, Damão e Diu pelas tropas indianas. O estado de euforia levaria a absurdos incompatíveis com o bom senso requerido - mas vestiria a farda dourada do patriotismo com as suas quinas e castelos.
Infelizmente, os ventos da História arrasam os castelos de areia do patriotismo e transformam-no numa coisa obsoleta e arruinada. Quando o doutor Salazar ordenou às tropas que resistissem a todo o custo aos indianos, o mundo tinha já levado uma volta. Ficou bem, no retrato, a reacção honrosa - mas o resto do mundo "compreendia" a derrocada das potências coloniais e aguardava, por motivos estratégicos, que o meu país de então se desfizesse das possessões africanas e orientais. Por motivos que não vêm a esta crónica, a década de cinquenta foi decisiva para todos nós e antecipou os sinais do que viriam a ser os anos absurdos de sessenta. O velho doutor Homem, meu pai, encerrado o capítulo do assalto a Berlim no termo da Guerra, dobrou as folhas do 'Daily Telegraph' (recebido com mais de uma semana de atraso na Baixa do Porto) e disse a frase que na altura não ousei compreender: "Vamos, então, cuidar da porta de entrada." A sua relação com o ditador foi uma questão familiar permanente e duradoura, transformada em obsessão com o correr dos anos. Ele acreditava que o doutor Salazar, com o avançar da idade, poderia começar a não regular totalmente bem - e que o País estaria condenado a ficar caquético. Portanto, quanto mais cedo se livrasse dos fantasmas e dos sonhos de grandeza, mais rapidamente se vacinaria contra os males do século, entre os quais estava certamente o comunismo.
Esta maneira de pensar era tão absurda como qualquer outra, mas tinha um pouco a ver com a misantropia dos Homem; desde que os não preocupassem demasiado, a vida seguiria o seu caminho. Não seguiu, como se sabe. Hoje, somos uma velha família que se reúne aos domingos e durante o Verão para assinalar o indesmentível facto de que os anos passam mesmo que a selecção de futebol ganhe campeonatos ou seja humilhada pela derrota. Continuamos a pensar que estamos no centro do mundo (pelo menos do nosso, certamente), mesmo que entre os meus sobrinhos haja votantes no Bloco de Esquerda ou casamentos sem casamento. Limito-me a compreender tudo isso, e até a euforia das hordas futebolísticas - é um patriotismo da festa e não da abnegação. Trata-se da alegria de pertencer aos vencedores e por isso é menos questionável. Se as hordas fossem colocadas diante da inevitabilidade da perda de Goa e Diu, como depois de Angola e de Moçambique, até onde se ergueriam as nossas bandeiras? É esse o estranho valor do patriotismo, o de poder reagir solenemente diante das derrotas.
in Revista Notícias Sábado – 8 Julho 2006
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