A gabardina do Brasil
Juscelino Kubitschek de Oliveira poderia ter sido o meu ídolo se eu não tivesse atravessado a adolescência com a sensação de pertencer a outra década, anterior. Cheguei ao Brasil em Julho de 1957, creio que numa manhã resfriada. O Rio de Janeiro haveria de pertencer-me durante dois meses e meio, durante os quais nada fiz de público que merecesse menção posterior tirando jantares regulares com os correspondentes locais do escritório do velho doutor Homem, meu pai, já eles herdeiros ou, por assim dizer, continuadores das relações que existiam com o meu avô Homem, administrador de propriedades no Douro e no Minho. Uma vasta rede familiar estava encarregada de me receber na então capital brasileira (a nova capital seria inaugurada apenas em 1960, no meio dos sertões), servindo-me abundantemente a sua generosidade e hospitalidade.
O velho doutor Homem, meu pai, foi levar-me e despedir-se de mim a Lisboa. Tirando uma estada irregular no Estoril, por indicação (e, no fundo, por imposição) da minha mãe, poucas vezes me tinha ausentado do Porto sozinho. Houve, naquela despedida, uma cumplicidade natural – no fundo eu ia ao Brasil, o que significava não apenas repetir a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, mas também retomar os passos do tio Augusto, que só uns anos depois regressaria do Pernambuco para os pinhais de Afife. Apenas depois de derradeiras recomendações sobre alojamento, recursos financeiros e alguma decência me pareceu ter escutado um “diverte-te” em surdina – mas eu estava já de costas segurando no braço uma gabardina tão inútil na altura como hoje, mas que ainda conservo por motivos sentimentais.
Interpreto aquela recomendação final do velho doutor Homem, meu pai, como uma manifestação de pudor entre pai e filho, já de costas voltadas um para o outro. Passados cinquenta anos sobre essa viagem, praticamente, recordo aquele instante em que o clima moderado do Inverno da Guanabara me topou desprevenido na Copacabana de então, festiva, cheia de actrizes americanas e de orquestras nos hotéis, vivendo o esplendor das suas calçadas. Foram, portanto, dois meses decisivos na minha vida – dedicados à elegância (vestia-se bem no Rio de Janeiro de então), ao teatro (que era bom), às companhias de ocasião e ao estabelecimento de relações cordiais do escritório familiar com os nossos correspondentes locais.
Inopinadamente, como acontece com um rapaz de trinta anos largamente curado de um antigo desgosto de amor, acreditei enamorar-me de novo. Atribuí isso ao clima, à distância de Portugal e, naturalmente, à beleza de uma jovem com quem visitei os restaurantes da moda e que me ensinou, sem saber, a apreciar a leveza da vida. A passagem do tempo dilui essa impressão de época, como os aromas do Jardim Botânico ou da maresia de Copacabana – mas nunca desfez a evocação dessa beleza de outrora, muito diferente das convenções matrimoniais que me estariam destinadas no Portugal governado pelo doutor Salazar. Respirei momentos de felicidade nesse Brasil de então, o Brasil de Juscelino Kubitschek. Talvez por isso lhe tenha guardado sempre alguma ternura. Quando o antigo presidente morreu, de acidente de automóvel, depois de hostilizado pela esquerda e pela direita da época, pensei que uma parte do Brasil desaparecera também. Sem saber, tinha razão a sete mil quilómetros de distância, sentado a uma mesa de A Brasileira, na baixa do Porto, lendo “O Primeiro de Janeiro”.
Finalmente, sobre o Brasil – o leitor pensará que fui, outrora, um romântico. Todos fomos. Não fazemos nada de realmente novo desde há séculos. Nem quando evocamos as memórias de juventude, aquilo que foi turbulento ou que revela a primeira doçura da maturidade. Todos fomos românticos e acreditámos no que os nossos viam, pensando que isso era verdadeiro. Só a idade nos empresta o talento que nos permite distinguir as sombras projectadas pela realidade daquilo que é escuridão total.
Ao sair do meu hotel, na zona do Flamengo, depois de mandar descer as malas, reparei que não tinha usado uma única vez a gabardina, que ficara pendurada a um canto. Não chovera. Não a vestira. Não a vesti mais, nunca mais. E nunca mais voltei ao Brasil.
in Revista Notícias Sábado – 1 Julho 2006
O velho doutor Homem, meu pai, foi levar-me e despedir-se de mim a Lisboa. Tirando uma estada irregular no Estoril, por indicação (e, no fundo, por imposição) da minha mãe, poucas vezes me tinha ausentado do Porto sozinho. Houve, naquela despedida, uma cumplicidade natural – no fundo eu ia ao Brasil, o que significava não apenas repetir a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, mas também retomar os passos do tio Augusto, que só uns anos depois regressaria do Pernambuco para os pinhais de Afife. Apenas depois de derradeiras recomendações sobre alojamento, recursos financeiros e alguma decência me pareceu ter escutado um “diverte-te” em surdina – mas eu estava já de costas segurando no braço uma gabardina tão inútil na altura como hoje, mas que ainda conservo por motivos sentimentais.
Interpreto aquela recomendação final do velho doutor Homem, meu pai, como uma manifestação de pudor entre pai e filho, já de costas voltadas um para o outro. Passados cinquenta anos sobre essa viagem, praticamente, recordo aquele instante em que o clima moderado do Inverno da Guanabara me topou desprevenido na Copacabana de então, festiva, cheia de actrizes americanas e de orquestras nos hotéis, vivendo o esplendor das suas calçadas. Foram, portanto, dois meses decisivos na minha vida – dedicados à elegância (vestia-se bem no Rio de Janeiro de então), ao teatro (que era bom), às companhias de ocasião e ao estabelecimento de relações cordiais do escritório familiar com os nossos correspondentes locais.
Inopinadamente, como acontece com um rapaz de trinta anos largamente curado de um antigo desgosto de amor, acreditei enamorar-me de novo. Atribuí isso ao clima, à distância de Portugal e, naturalmente, à beleza de uma jovem com quem visitei os restaurantes da moda e que me ensinou, sem saber, a apreciar a leveza da vida. A passagem do tempo dilui essa impressão de época, como os aromas do Jardim Botânico ou da maresia de Copacabana – mas nunca desfez a evocação dessa beleza de outrora, muito diferente das convenções matrimoniais que me estariam destinadas no Portugal governado pelo doutor Salazar. Respirei momentos de felicidade nesse Brasil de então, o Brasil de Juscelino Kubitschek. Talvez por isso lhe tenha guardado sempre alguma ternura. Quando o antigo presidente morreu, de acidente de automóvel, depois de hostilizado pela esquerda e pela direita da época, pensei que uma parte do Brasil desaparecera também. Sem saber, tinha razão a sete mil quilómetros de distância, sentado a uma mesa de A Brasileira, na baixa do Porto, lendo “O Primeiro de Janeiro”.
Finalmente, sobre o Brasil – o leitor pensará que fui, outrora, um romântico. Todos fomos. Não fazemos nada de realmente novo desde há séculos. Nem quando evocamos as memórias de juventude, aquilo que foi turbulento ou que revela a primeira doçura da maturidade. Todos fomos românticos e acreditámos no que os nossos viam, pensando que isso era verdadeiro. Só a idade nos empresta o talento que nos permite distinguir as sombras projectadas pela realidade daquilo que é escuridão total.
Ao sair do meu hotel, na zona do Flamengo, depois de mandar descer as malas, reparei que não tinha usado uma única vez a gabardina, que ficara pendurada a um canto. Não chovera. Não a vestira. Não a vesti mais, nunca mais. E nunca mais voltei ao Brasil.
in Revista Notícias Sábado – 1 Julho 2006
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