Férias no Brasil
Estamos agora na temporada do Brasil. Os Homem, que não foram frequentadores assíduos, beneficiaram largamente com a sua existência – e existe actualmente um ramo da família que não dispensa a sua temporada brasileira, certamente que já não nos engenhos de açúcar, numa fazenda do Pernambuco ou num pequeno chalé da Guanabara, mas sim nas praias que vêm nos folhetos de viagens.
O turismo de hoje reduz-se a duas viagens: a ida e a volta. Pelo meio há um período de alguns dias dedicado a duas tarefas essenciais – ou o estipêndio de energias que existem em excesso, em alguma parte do corpo; ou a tendência para a inanição preferencialmente absoluta. Uma e outra actividade são tentativas de imitar os ricos de outros tempos, que ora se dedicavam à ociosidade, ora à chamada diversão. A vida poupou-me a esse martírio, convencendo-me a manter uma reserva do pior dos hábitos, a preguiça e, por extensão, uma certa misantropia, racional mas inofensiva.
O velho doutor Homem, meu pai, atormentado pela moral, condenava o desperdício e, por isso, as nossas viagens familiares eram sempre antecedidas de algumas lições de geografia geral e de cartografia, cuidando que isso tornava as férias mais úteis à humanidade. Reconheço o esforço mas, como era o mais velho dos irmãos, sempre me pareceu um propósito desnecessário, embora cometido com boas intenções: a humanidade dispensou os nossos conhecimentos gerais sobre maneiras à mesa e monumentos nacionais, e todos nós vimos que era inútil, para a mesma humanidade, a existência de uma horda de provincianos portuenses que conheciam de cor a orografia da Península, a história da sucessão nos vários tronos europeus, o panorama histórico geral do Mediterrâneo ou, mais prosaicamente, algumas expressões idiomáticas que poderiam ser aplicadas em circunstâncias de decoro social.
Nessa altura – refiro-me aos anos cinquenta – o Brasil era longe demais, como notámos quando um dos nossos tios regressou do Brasil para se instalar perto de Afife, numa quinta que comprou com dinheiro vivo depois de se desfazer de todos os bens que o comércio geral do Pernambuco lhe proporcionara durante algumas décadas de labor e, acredito, devassidão tropical. A princípio estranhámos apenas a avareza, o sotaque e o cardápio geral das grandes refeições de família (o feijão preto e as farinhas locais eram para nós mistérios a desvendar). As suas ideias políticas confinaram-se, durante anos, à constatação de que “isto agora é uma República”, que funcionava como um lamento de cada vez que tinha o seu contabilista à mesa. Com o tempo, ouvi-o queixar-se – com aquela nostalgia das coisas impossíveis – de não poder voltar à fazenda do Recife ou às passeatas a cavalo diante do Forte Oranje. A meu ver, depois de eu próprio ter experimentado os meus dois meses, quase três, de delícias brasileiras, creio que lhe faltava mais do que o verde bucólico pernambucano, com colinas de cana-de-açúcar e as cálidas praias do Atlântico Sul.
Sendo hospitaleiro, bom anfitrião e tendo ganho fama de generoso pelo Natal e na Páscoa, o nosso tio nunca deixou de ser visto pela família como um excêntrico de que se podia desconfiar com alguma regularidade. Acredito que é uma tradição: os “brasileiros” de Camilo nunca tiveram boa fama nem na literatura nem no Minho – a inveja cercou-os, e às suas casas falsamente sumptuosas, compradas a velhas família falidas ou construídas por arquitectos que só hoje são apreciados. Esse barroco arquitectónico dos “brasileiros” de Camilo (que nunca se livrou do fantasma de Pinheiro Alves, a quem ficou com o relógio e a esposa) espalhou-se como uma praga pelo Porto e arredores, por todo o Entre-Douro-e-Minho, mas era a prova respeitável de uma conquista realizada nas longínquas terras do sertão e do comércio geral da antiga colónia: a da riqueza pelas próprias mãos, contra o calor dos trópicos, os mosquitos, a soberba portuguesa que atravessou o Atlântico com D. João V, e, certamente, a memória da penúria.
Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, regressou do Rio de Janeiro na condição de remediada. Ocasionalmente, quando passava diante desses solares e casarões pontilhados de azulejos e de camélias escuras, detectei nela alguma nostalgia desse tempo em que se enriquecia no Brasil. Também ela queria ter vivido noutro século. Mas não tinha razão, como contarei na próxima semana, recordando a minha viagem ao Brasil.
In Revista Notícias Sábado – 24 Junho 2006
O turismo de hoje reduz-se a duas viagens: a ida e a volta. Pelo meio há um período de alguns dias dedicado a duas tarefas essenciais – ou o estipêndio de energias que existem em excesso, em alguma parte do corpo; ou a tendência para a inanição preferencialmente absoluta. Uma e outra actividade são tentativas de imitar os ricos de outros tempos, que ora se dedicavam à ociosidade, ora à chamada diversão. A vida poupou-me a esse martírio, convencendo-me a manter uma reserva do pior dos hábitos, a preguiça e, por extensão, uma certa misantropia, racional mas inofensiva.
O velho doutor Homem, meu pai, atormentado pela moral, condenava o desperdício e, por isso, as nossas viagens familiares eram sempre antecedidas de algumas lições de geografia geral e de cartografia, cuidando que isso tornava as férias mais úteis à humanidade. Reconheço o esforço mas, como era o mais velho dos irmãos, sempre me pareceu um propósito desnecessário, embora cometido com boas intenções: a humanidade dispensou os nossos conhecimentos gerais sobre maneiras à mesa e monumentos nacionais, e todos nós vimos que era inútil, para a mesma humanidade, a existência de uma horda de provincianos portuenses que conheciam de cor a orografia da Península, a história da sucessão nos vários tronos europeus, o panorama histórico geral do Mediterrâneo ou, mais prosaicamente, algumas expressões idiomáticas que poderiam ser aplicadas em circunstâncias de decoro social.
Nessa altura – refiro-me aos anos cinquenta – o Brasil era longe demais, como notámos quando um dos nossos tios regressou do Brasil para se instalar perto de Afife, numa quinta que comprou com dinheiro vivo depois de se desfazer de todos os bens que o comércio geral do Pernambuco lhe proporcionara durante algumas décadas de labor e, acredito, devassidão tropical. A princípio estranhámos apenas a avareza, o sotaque e o cardápio geral das grandes refeições de família (o feijão preto e as farinhas locais eram para nós mistérios a desvendar). As suas ideias políticas confinaram-se, durante anos, à constatação de que “isto agora é uma República”, que funcionava como um lamento de cada vez que tinha o seu contabilista à mesa. Com o tempo, ouvi-o queixar-se – com aquela nostalgia das coisas impossíveis – de não poder voltar à fazenda do Recife ou às passeatas a cavalo diante do Forte Oranje. A meu ver, depois de eu próprio ter experimentado os meus dois meses, quase três, de delícias brasileiras, creio que lhe faltava mais do que o verde bucólico pernambucano, com colinas de cana-de-açúcar e as cálidas praias do Atlântico Sul.
Sendo hospitaleiro, bom anfitrião e tendo ganho fama de generoso pelo Natal e na Páscoa, o nosso tio nunca deixou de ser visto pela família como um excêntrico de que se podia desconfiar com alguma regularidade. Acredito que é uma tradição: os “brasileiros” de Camilo nunca tiveram boa fama nem na literatura nem no Minho – a inveja cercou-os, e às suas casas falsamente sumptuosas, compradas a velhas família falidas ou construídas por arquitectos que só hoje são apreciados. Esse barroco arquitectónico dos “brasileiros” de Camilo (que nunca se livrou do fantasma de Pinheiro Alves, a quem ficou com o relógio e a esposa) espalhou-se como uma praga pelo Porto e arredores, por todo o Entre-Douro-e-Minho, mas era a prova respeitável de uma conquista realizada nas longínquas terras do sertão e do comércio geral da antiga colónia: a da riqueza pelas próprias mãos, contra o calor dos trópicos, os mosquitos, a soberba portuguesa que atravessou o Atlântico com D. João V, e, certamente, a memória da penúria.
Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo, regressou do Rio de Janeiro na condição de remediada. Ocasionalmente, quando passava diante desses solares e casarões pontilhados de azulejos e de camélias escuras, detectei nela alguma nostalgia desse tempo em que se enriquecia no Brasil. Também ela queria ter vivido noutro século. Mas não tinha razão, como contarei na próxima semana, recordando a minha viagem ao Brasil.
In Revista Notícias Sábado – 24 Junho 2006
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