O livro da Natureza
Para que servem os livros, amontoados e desequilibrados? Entre mim e eles, nestas tardes de calor, fechadas as portadas de madeira da casa de Moledo, não há diálogo, não há – como se diz agora – interacção. Eu limito-me a estar deste lado, diante deles, olhando-os como uma estampa ou como um mapa de um velho atlas desactualizado.
Tenho, pelos velhos atlas, é preciso dizer, uma ternura especial, embora me esforce por actualizar as edições dos três que existem na biblioteca; as mudanças de fronteiras, alterações de nomes, ou simples trocas de soberania são sempre importantes. Há cerca de trinta, ao todo, entre actualizações e reimpressões – o mundo nunca foi, portanto, um problema para os Homem. Às vezes abro um ou outro e recordo como foi o traçado dos países, como evoluíram as suas designações, como se mudaram as cores dos estados federados e como alguns deles se tornaram independentes – e como continua exacta, imutável, perfeita, a localização das pequenas ilhas que formam o arquipélago de Tristão da Cunha, esse mistério da geografia do Atlântico Sul e dos nossos descobrimentos. O primeiro vice-rei da Índia portuguesa, que antecedeu o primo Afonso de Albuquerque no seu cargo, ficou pois perpetuado nas várias edições de atlas de todas as línguas: Tristão da Cunha continuará pelos séculos adiante como essa mancha no meio do mar profundo lembrando que há quinhentos anos, há exactamente quinhentos anos, em 1506, aquelas rochas foram visitadas por homens cujos netos, bisnetos e tetranetos depois se desinteressaram pelo facto. Na verdade, a data não foi assinalada e compreendo a perturbação que isso pudesse causar nos arquivos do velho império, habituado a glórias avulsas, repentinas e destinadas a inventários de banalidades.
Sinto diante de Tristão da Cunha a mesma angústia que me toma quando olho para os livros – há sempre um deles, abandonado há anos, que me pede atenção. Aproximo-me deles para recordar uma página, a data em que foi comprado numa livraria, um autor ignorado ou relegado para a penumbra. E pergunto-me: para que servem os livros, amontoados e desorganizados, inclinados uns sobre os outros, ou arrumados numa estante? Ora, eu sempre compreendi a vaidade do bibliotecário, mesmo a sua avareza – ela é um dos grandes segredos, não do mundo que teme a passagem do tempo, mas daquele que não tem quase nenhuma comunicação com o tempo e se limita a arquivar, a incluir uma nova ficha no catálogo de raridades acumuladas, a apreciar a forma como o tempo passa sobre os livros carregando-os de pó, de humidade e de comentários. A vaidade dos bibliotecários é uma das mais justificadas, e eu compreendo-a bem de cada vez que, sentado no sofá, assinalo distorções e enganos na organização das prateleiras, acasos na proximidade de autores, ou sinais de perfeição numa arrumação de há tempos.
A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco.
Na falta de literatura sobre Tristão da Cunha, dediquei-me a mais um volume do “Minho Pittoresco” para ler, na prosa de José Augusto Vieira, uma das explicações mais surpreendentes sobre a natureza do meu Minho. Repare o leitor: “Qualquer que seja o lado para que nos voltemos, a vista não alcança um horisonte que não seja fechado por montanhas, uma paysagem que não seja tufada de carvalheiras viçosas. Talvez que a abundancia d’esta especie florestal justifique as revoluções minhotas, que teem descido das alturas de Vieira resolvidas a varrer a cacete todas as oligarchias das terras baixas. A observação fica já agora como futuro elemento mesologico a determinar, quando se tenha em vista estabelecer o laço intimo, que liga a abundancia do carvalho cerquinho com o espírito revolucionário das populações, que lhe sentem o zoar da rama.”
Tamanho esforço de antropólogo apenas é permitido no “Minho Pittoresco”. Em redor de Moledo, nas encostas mais luminosas, existem carvalhos frondosos que resistem à avalanche de pinhais. Prefiro estes perto do mar – e os carvalhos no alto da serra, nas penedias, nas curvas dos montes. Mas os livros das bibliotecas podem organizar-se. Os da natureza estão apenas desorganizados.
in Revista Notícias Sábado – 17 Junho 2006
Tenho, pelos velhos atlas, é preciso dizer, uma ternura especial, embora me esforce por actualizar as edições dos três que existem na biblioteca; as mudanças de fronteiras, alterações de nomes, ou simples trocas de soberania são sempre importantes. Há cerca de trinta, ao todo, entre actualizações e reimpressões – o mundo nunca foi, portanto, um problema para os Homem. Às vezes abro um ou outro e recordo como foi o traçado dos países, como evoluíram as suas designações, como se mudaram as cores dos estados federados e como alguns deles se tornaram independentes – e como continua exacta, imutável, perfeita, a localização das pequenas ilhas que formam o arquipélago de Tristão da Cunha, esse mistério da geografia do Atlântico Sul e dos nossos descobrimentos. O primeiro vice-rei da Índia portuguesa, que antecedeu o primo Afonso de Albuquerque no seu cargo, ficou pois perpetuado nas várias edições de atlas de todas as línguas: Tristão da Cunha continuará pelos séculos adiante como essa mancha no meio do mar profundo lembrando que há quinhentos anos, há exactamente quinhentos anos, em 1506, aquelas rochas foram visitadas por homens cujos netos, bisnetos e tetranetos depois se desinteressaram pelo facto. Na verdade, a data não foi assinalada e compreendo a perturbação que isso pudesse causar nos arquivos do velho império, habituado a glórias avulsas, repentinas e destinadas a inventários de banalidades.
Sinto diante de Tristão da Cunha a mesma angústia que me toma quando olho para os livros – há sempre um deles, abandonado há anos, que me pede atenção. Aproximo-me deles para recordar uma página, a data em que foi comprado numa livraria, um autor ignorado ou relegado para a penumbra. E pergunto-me: para que servem os livros, amontoados e desorganizados, inclinados uns sobre os outros, ou arrumados numa estante? Ora, eu sempre compreendi a vaidade do bibliotecário, mesmo a sua avareza – ela é um dos grandes segredos, não do mundo que teme a passagem do tempo, mas daquele que não tem quase nenhuma comunicação com o tempo e se limita a arquivar, a incluir uma nova ficha no catálogo de raridades acumuladas, a apreciar a forma como o tempo passa sobre os livros carregando-os de pó, de humidade e de comentários. A vaidade dos bibliotecários é uma das mais justificadas, e eu compreendo-a bem de cada vez que, sentado no sofá, assinalo distorções e enganos na organização das prateleiras, acasos na proximidade de autores, ou sinais de perfeição numa arrumação de há tempos.
A generalidade dos bons leitores, ou dos bons bibliotecários, gosta de mencionar as alegrias que eles – os livros – lhes proporcionaram, mas eu prefiro falar de felicidade, o que se compreende num velho de oitenta e seis anos que os folheia para confirmar que a curiosidade se sacia com pouco.
Na falta de literatura sobre Tristão da Cunha, dediquei-me a mais um volume do “Minho Pittoresco” para ler, na prosa de José Augusto Vieira, uma das explicações mais surpreendentes sobre a natureza do meu Minho. Repare o leitor: “Qualquer que seja o lado para que nos voltemos, a vista não alcança um horisonte que não seja fechado por montanhas, uma paysagem que não seja tufada de carvalheiras viçosas. Talvez que a abundancia d’esta especie florestal justifique as revoluções minhotas, que teem descido das alturas de Vieira resolvidas a varrer a cacete todas as oligarchias das terras baixas. A observação fica já agora como futuro elemento mesologico a determinar, quando se tenha em vista estabelecer o laço intimo, que liga a abundancia do carvalho cerquinho com o espírito revolucionário das populações, que lhe sentem o zoar da rama.”
Tamanho esforço de antropólogo apenas é permitido no “Minho Pittoresco”. Em redor de Moledo, nas encostas mais luminosas, existem carvalhos frondosos que resistem à avalanche de pinhais. Prefiro estes perto do mar – e os carvalhos no alto da serra, nas penedias, nas curvas dos montes. Mas os livros das bibliotecas podem organizar-se. Os da natureza estão apenas desorganizados.
in Revista Notícias Sábado – 17 Junho 2006
<< Home