A vida dos outros
Nunca me interessou muito a polémica sobre as polainas do doutor Salazar, mas recordo o seu uso. O velho doutor Homem, meu pai, achava que devíamos prestar alguma atenção a questões de carácter mesmo que a vida privada dos outros não nos interessasse. Na verdade, lá no fundo, a vida privada dos outros interessa-nos bastante (a nossa está cheia de defeitos), se bem que algumas pessoas tivessem uma vida pública virtuosa - funcionários cumpridores, zelosos oficiais de repartições dos anos cinquenta, escrupulosos amanuenses e contabilistas, valorosos e diligentes empregados de balcão. Enfim, gente que nunca se distinguiu verdadeiramente naquilo que é hoje a vida pública, aquela soma de revelações desnecessárias sobre as suas minudências pessoais.
A "vida privada" de antigamente era justamente considerada privada porque se passava paredes dentro. As casas de família, é certo, albergavam segredos lamentáveis - mas ou tinham um Camilo à altura como relator (e o romance encarregava-se delas, vingativo e cheio de insinuações), ou limitavam-se a circular nas ruas da maledicência. A imprensa, pelo menos a que se lia à mesa do velho doutor Homem, meu pai, não transportava nas suas páginas informações sobre a improvável vida dos outros. Era uma vantagem sobre estes tempos.
Os Homem nem sempre prezaram a liberdade mas, desde que se habituaram a ela, aprenderam duas coisas. Primeiro, que ou há liberdade ou não há; segundo, que não vale a pena citar os mestres quando se trata de cercear a liberdade dos outros em nome da moral. Viver em liberdade, ou seja, aceitar também o escrutínio de estranhos, significa que quem vai à guerra dá e leva. A minha irmã mais nova, que lê as revistas de sociedade onde se expõem as vidas dos outros, mantém o princípio de que só se mostra a intimidade da família quando se está disponível para abdicar da própria intimidade. Quem a mostra uma vez, tem para sempre afixado esse retrato nas casas dos outros. Ela tem uma longa carreira de leitora da 'Hola' e conhece o emaranhado de ramificações das realezas europeias e das famílias de actrizes e condessas espanholas, além das últimas doenças que afectam cantoras de flamenco, políticos adúlteros e toureiros que ainda vão à Monumental de Madrid. Mas a sua duplicidade tem razão de ser: é humaníssimo que nos interessemos pela vida "dos outros", sobretudo quando "os outros" a expõem; mas, ai de nós!, expor a nossa vida (e os nossos pecados e retratos de família) significa sermos vistos por ainda mais gente, e certamente que essa gente é mais curiosa do que nós.
Os Homem, nisso, definiram sempre as suas regras com uma clareza meridiana — mas nunca exigiram que "os outros" as seguissem para benefício próprio. Há um preço a pagar quando se tem vida pública - pela simples razão de que, ao tê-la em excesso, abdicamos da vida privada; não parece existir salvação. O velho doutor Homem, meu pai, invejava a vida dos advogados que nunca tinham de se deslocar à barra dos tribunais e argumentar em público sobre a inocência de um constituinte ou (bem vistas as coisas) sobre a perfídia de um negócio. Numa existência habituada a lidar com o bem e o mal em doses frequentemente ásperas, a palavra "vida pública" tinha um peso excessivo aos olhos da mentalidade democrática de hoje. Ele sabia que não podia jurar sobre a aflitiva inocência dos seus - porque eram humanos, como "os outros". Ou seja: estavam disponíveis para praticar todo o género de perfídias e de pequenos e grandes pecados. Essa era, também, a vantagem do seu cepticismo, sempre indisponível para aplaudir com entusiasmo, mas incapaz de ceder permanentemente à amargura.
A falar verdade, o velho doutor Homem, meu pai, admirava os outros. Admirava os outros sem reservas e sem limites, sobretudo os autores preferidos e os seus companheiros de brídge, mas o pudor impedia-o de exorbitar e de enumerar virtudes alheias - ele sabia que alguém se encarregaria de mostrar o reverso de tanta virtude. A televisão e as revistas de sociedade (como as que minha irmã traz a fim de alegrar o cesto de leituras de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo) não nos ensinam senão isso: ao mostrar o rosto, ele gasta-se. Mesmo a vaidade de um velho, como eu, é perigosa.
in Revista Notícias Sábado – 3 de Junho 2006
A "vida privada" de antigamente era justamente considerada privada porque se passava paredes dentro. As casas de família, é certo, albergavam segredos lamentáveis - mas ou tinham um Camilo à altura como relator (e o romance encarregava-se delas, vingativo e cheio de insinuações), ou limitavam-se a circular nas ruas da maledicência. A imprensa, pelo menos a que se lia à mesa do velho doutor Homem, meu pai, não transportava nas suas páginas informações sobre a improvável vida dos outros. Era uma vantagem sobre estes tempos.
Os Homem nem sempre prezaram a liberdade mas, desde que se habituaram a ela, aprenderam duas coisas. Primeiro, que ou há liberdade ou não há; segundo, que não vale a pena citar os mestres quando se trata de cercear a liberdade dos outros em nome da moral. Viver em liberdade, ou seja, aceitar também o escrutínio de estranhos, significa que quem vai à guerra dá e leva. A minha irmã mais nova, que lê as revistas de sociedade onde se expõem as vidas dos outros, mantém o princípio de que só se mostra a intimidade da família quando se está disponível para abdicar da própria intimidade. Quem a mostra uma vez, tem para sempre afixado esse retrato nas casas dos outros. Ela tem uma longa carreira de leitora da 'Hola' e conhece o emaranhado de ramificações das realezas europeias e das famílias de actrizes e condessas espanholas, além das últimas doenças que afectam cantoras de flamenco, políticos adúlteros e toureiros que ainda vão à Monumental de Madrid. Mas a sua duplicidade tem razão de ser: é humaníssimo que nos interessemos pela vida "dos outros", sobretudo quando "os outros" a expõem; mas, ai de nós!, expor a nossa vida (e os nossos pecados e retratos de família) significa sermos vistos por ainda mais gente, e certamente que essa gente é mais curiosa do que nós.
Os Homem, nisso, definiram sempre as suas regras com uma clareza meridiana — mas nunca exigiram que "os outros" as seguissem para benefício próprio. Há um preço a pagar quando se tem vida pública - pela simples razão de que, ao tê-la em excesso, abdicamos da vida privada; não parece existir salvação. O velho doutor Homem, meu pai, invejava a vida dos advogados que nunca tinham de se deslocar à barra dos tribunais e argumentar em público sobre a inocência de um constituinte ou (bem vistas as coisas) sobre a perfídia de um negócio. Numa existência habituada a lidar com o bem e o mal em doses frequentemente ásperas, a palavra "vida pública" tinha um peso excessivo aos olhos da mentalidade democrática de hoje. Ele sabia que não podia jurar sobre a aflitiva inocência dos seus - porque eram humanos, como "os outros". Ou seja: estavam disponíveis para praticar todo o género de perfídias e de pequenos e grandes pecados. Essa era, também, a vantagem do seu cepticismo, sempre indisponível para aplaudir com entusiasmo, mas incapaz de ceder permanentemente à amargura.
A falar verdade, o velho doutor Homem, meu pai, admirava os outros. Admirava os outros sem reservas e sem limites, sobretudo os autores preferidos e os seus companheiros de brídge, mas o pudor impedia-o de exorbitar e de enumerar virtudes alheias - ele sabia que alguém se encarregaria de mostrar o reverso de tanta virtude. A televisão e as revistas de sociedade (como as que minha irmã traz a fim de alegrar o cesto de leituras de Dona Elaine, a governanta do eremitério de Moledo) não nos ensinam senão isso: ao mostrar o rosto, ele gasta-se. Mesmo a vaidade de um velho, como eu, é perigosa.
in Revista Notícias Sábado – 3 de Junho 2006
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