A música que vai e volta
PABLO CASALS. Escrevo o nome do violoncelista catalão com certo receio. Era ele que tocava as suites de Bach que o velho doutor Homem, meu pai, mais costumava ouvir na sua sala do casarão de Ponte de Lima. Havia discos que o davam como Pablo Casais, e outros que o reconheciam como Pau Casais, mas atribuo isso ao nacionalismo de Barcelona mais do que a fidelidade ao próprio arco manejado por Casais.
Por princípio, uma tristeza muito profunda devia espalhar-se pelos corredores do casarão com a suite violoncelo n.º1, a BWV 1007. Recordo-a como um passeio pela eternidade, mas o leitor (e a leitora) não quer saber disso - aproxima-se o Verão, embora só no Verão a família assistisse à sua execução vezes sem fim, até que a doçura da tarde encontrasse o crepúsculo ou a primeira estrela da tarde. Mas, pelo contrário, muito pelo contrário, não era de tristeza que se tratava. Peço ao leitor que entenda: só um som como aquele, o Bach mais profundo e mais destituído de alegria, poderia ser escutado com o sorriso tranquilo do velho doutor Homem, meu pai.
O pátio estava cheio de crianças turbulentas, nesses primeiros anos da década de setenta - antes do 25 de Abril - quando o viúvo se sentava na biblioteca (havia uma sala transitoriamente assim denominada onde quer que ele passasse a sua quinzena anual de férias - mesmo que apenas se lesse a 'Flama' ou o 'Journal de Génève') e pedia a alguém para colocar o disco no vetustíssimo Philips. E desse pátio vinha o mais interessante contraste com a música de Bach - os gritos das crianças, o choro, as vozes das minhas irmãs chamando-as para a sesta ou a passagem de um cortejo de romaria. O ruído dessas intrusões raramente me incomodou. Ao velho doutor Homem, meu pai, haveria de parecer que Casais suportava tudo - ou o imenso e colossal Tibor Varga, esse outro violoncelista cujos discos vinham de Paris e que eram escutados como uma relíquia ou como se fosse literatura clandestina a entrar no tugúrio desarrumado e soturno de um esquerdista, rodeado de relíquias, de retratos e de folclore.
À sua maneira, nestas ocasiões, o velho advogado portuense portava-se como um deles - abrindo sozinho o embrulho de uma loja de discos parisiense, despertando de novo para esse cruel luxo da sua juventude, que foram as viagens pela Europa. Hoje, quando me aproximo da derradeira idade do meu pai, reconheço que essa música vinda dos séculos me tranquiliza como quase nada mais. Não recomendo que se ouça, mas eu ouço Johann Christoph Pachelbel como uma aventura do vento que vai e volta, que apenas volteia no ar como o calor do final da Primavera, estendendo a sua melancolia até aos pinhais em redor da casa e que descem para a praia de Moledo. Na verdade, os pinhais sempre desceram para a praia de Moledo, e essa é uma das suas vantagens: a da eternidade que se repete, a do som dessa música que vive afastando-se e aproximando-se sem necessidade de mudar tudo o resto.
A ideia de que as coisas são superlativas quando "mudam o mundo" é boa para espíritos irregulares e ciclotímicos, desejosos de se meterem nas nossas leituras, na nossa música, no nosso destino. Eu passaria o Verão a escutar essa música, aquele Debussy perdido, o Bach da minha infância (aprendido com rigor), o Samuel Barber que me reconcilia - e o Jazz dos meus anos de ouro, quando se distinguia o clarinete do trompete (o de Coleman Hawkíngs, sobretudo, que tive o prazer de mostrar à minha sobrinha Maria Luísa para lhe provar que ainda havia salvação) e finalmente se pôde dizer que nem tudo era 'fox-trot'.
Mudar o mundo é uma tarefa muito aborrecida porque as pessoas, em geral, gostam deste, com as suas imperfeições e com os seus momentos de felicidade. É, provavelmente, um sinal de que o mundo, em geral, também não aprecia o gesto. Ao ouvir o ruído dessas recordações, interrompendo a música, pressinto o problema das pessoas que nunca conseguiram conciliar as duas coisas: a música e o ruído que vem dos pátios. Elas querem o silêncio absoluto ou a música absoluta. Coisas impossíveis, como sabemos hoje, para bem da humanidade.
in Revista Notícias Sábado – 10 Junho 2006
Por princípio, uma tristeza muito profunda devia espalhar-se pelos corredores do casarão com a suite violoncelo n.º1, a BWV 1007. Recordo-a como um passeio pela eternidade, mas o leitor (e a leitora) não quer saber disso - aproxima-se o Verão, embora só no Verão a família assistisse à sua execução vezes sem fim, até que a doçura da tarde encontrasse o crepúsculo ou a primeira estrela da tarde. Mas, pelo contrário, muito pelo contrário, não era de tristeza que se tratava. Peço ao leitor que entenda: só um som como aquele, o Bach mais profundo e mais destituído de alegria, poderia ser escutado com o sorriso tranquilo do velho doutor Homem, meu pai.
O pátio estava cheio de crianças turbulentas, nesses primeiros anos da década de setenta - antes do 25 de Abril - quando o viúvo se sentava na biblioteca (havia uma sala transitoriamente assim denominada onde quer que ele passasse a sua quinzena anual de férias - mesmo que apenas se lesse a 'Flama' ou o 'Journal de Génève') e pedia a alguém para colocar o disco no vetustíssimo Philips. E desse pátio vinha o mais interessante contraste com a música de Bach - os gritos das crianças, o choro, as vozes das minhas irmãs chamando-as para a sesta ou a passagem de um cortejo de romaria. O ruído dessas intrusões raramente me incomodou. Ao velho doutor Homem, meu pai, haveria de parecer que Casais suportava tudo - ou o imenso e colossal Tibor Varga, esse outro violoncelista cujos discos vinham de Paris e que eram escutados como uma relíquia ou como se fosse literatura clandestina a entrar no tugúrio desarrumado e soturno de um esquerdista, rodeado de relíquias, de retratos e de folclore.
À sua maneira, nestas ocasiões, o velho advogado portuense portava-se como um deles - abrindo sozinho o embrulho de uma loja de discos parisiense, despertando de novo para esse cruel luxo da sua juventude, que foram as viagens pela Europa. Hoje, quando me aproximo da derradeira idade do meu pai, reconheço que essa música vinda dos séculos me tranquiliza como quase nada mais. Não recomendo que se ouça, mas eu ouço Johann Christoph Pachelbel como uma aventura do vento que vai e volta, que apenas volteia no ar como o calor do final da Primavera, estendendo a sua melancolia até aos pinhais em redor da casa e que descem para a praia de Moledo. Na verdade, os pinhais sempre desceram para a praia de Moledo, e essa é uma das suas vantagens: a da eternidade que se repete, a do som dessa música que vive afastando-se e aproximando-se sem necessidade de mudar tudo o resto.
A ideia de que as coisas são superlativas quando "mudam o mundo" é boa para espíritos irregulares e ciclotímicos, desejosos de se meterem nas nossas leituras, na nossa música, no nosso destino. Eu passaria o Verão a escutar essa música, aquele Debussy perdido, o Bach da minha infância (aprendido com rigor), o Samuel Barber que me reconcilia - e o Jazz dos meus anos de ouro, quando se distinguia o clarinete do trompete (o de Coleman Hawkíngs, sobretudo, que tive o prazer de mostrar à minha sobrinha Maria Luísa para lhe provar que ainda havia salvação) e finalmente se pôde dizer que nem tudo era 'fox-trot'.
Mudar o mundo é uma tarefa muito aborrecida porque as pessoas, em geral, gostam deste, com as suas imperfeições e com os seus momentos de felicidade. É, provavelmente, um sinal de que o mundo, em geral, também não aprecia o gesto. Ao ouvir o ruído dessas recordações, interrompendo a música, pressinto o problema das pessoas que nunca conseguiram conciliar as duas coisas: a música e o ruído que vem dos pátios. Elas querem o silêncio absoluto ou a música absoluta. Coisas impossíveis, como sabemos hoje, para bem da humanidade.
in Revista Notícias Sábado – 10 Junho 2006
<< Home