A virtude da derrota
O retrato do senhor D. Miguel, que melancolicamente jaz na parede de um corredor do velho casarão de Ponte de Lima, já integra parte da chamada mobília dos Homem. A Tia Benedita achava que era uma das peças principais, mas a pobre senhora nunca deu a entender a gente de fora que se tratava de uma cópia - excelente, no entanto - do original (de Giovanni Ender) que o leitor e a leitora conhecem dos livros de estampas para identificar o príncipe derrotado. Em atenção à idade da matriarca ninguém lhe referiu o pormenor, que para ela seria certamente sem importância, embora eu suspeite de que conhecia toda a história do quadro, muito mais luminoso do que o de João Baptista Ribeiro, e que se pode visitar no Museu Soares dos Reis. Simplesmente, a senhora fazia-se apenas desentendida. Essa era, aliás, uma das características da Tia Benedita: fazer-se desentendida.
Na nossa sociedade democrática isso seria impossível, mas a senhora ficara a viver num mundo anterior ao 'fox-strot', e não valia a pena chamá-la a qualquer tipo de razão. Pensar (e dizer), até 1940, que havia perigo de o dr. Afonso Costa regressar para expulsar os padres e confiscar as igrejas era um absurdo até para crentes na vida depois na morte - mas fazia-lhe bem, mantendo-a desperta para o mundo da política, geralmente inacessível às mulheres da sua idade. Do mal o menos, comentava o velho doutor Homem, meu pai, que sempre fora o preferido da Tia Benedita e a quem ela legou a totalidade das peças da Companhia das índias. O velho advogado dizia, na sua ingenuidade, que a República era boa para atemorizar velhinhas, se bem que a desordem cronológica da senhora o assustasse.
A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga, a cidade que várias vezes aclamou D. Miguel e por muitos anos aguardou o seu regresso (anunciado por frades, generais sem exército e profetas alucinados de aldeias minhotas), acha pitoresco que a família conserve o retraio do príncipe naquele lugar de destaque e várias vezes perguntou se não era melhor mandar restaurá-lo e entregá-lo a um museu. A hipótese não é despropositada nem original, mas os Homem sempre gostaram de velharias — e das suas velharias muito mais. Consegui demovê-la da ideia quando lhe garanti que existe uma gravura do rosto do príncipe, de Franz Stöber, feita na Áustria a partir do original - e que Stöber é o interessante pintor do funeral de Beethoven. Esta associação salvou o retrato de Ponte de Lima. Ora, os caracóis do príncipe (visíveis no quadro ítalo-austríaco, mas diluídos na representação pátria), mais do que as suas diabruras e heroísmos, são património da família por motivos inexplicáveis até hoje.
Os livros de história pátria não deixaram de festejar os vencedores e os heróis do Mindelo, do cerco do Porto, de Angra e do teatro romântico. Portugal está cheio de derrotados que raramente mereceram atenção diante da hagiografia dos vencedores. Da desconhecida Dona Teresa, mãe do nosso primeiro rei, aos fidalgos que desafiaram o magnífico D. João II e por isso foram supliciados, passando pelos assassinos de Inês de Castro, por D. Leonor Teles e pelo seu conde, ou pelos vícios bonacheirões do nosso trono — há por certo, aí algumas injustiças no juízo dos nossos contemporâneos, habituados ao heroísmo das vitórias e à queima de arquivos. Ora, de alguma maneira, o retrato de D. Miguel lembra-nos a virtude da derrota.
O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que ninguém no seu perfeito juízo sabia mais do que três ou quatro frases do discurso justificativo de José Acúrsio das Neves em defesa do príncipe, e que provavelmente isso não teria importância porque as opções do passado não podem alterar-se dois séculos depois. O facto é que os homens não fortalecem o seu carácter colocando--se sempre do lado dos vencedores. Há uma estranha serenidade que só se adquire nas derrotas e, algumas vezes, na reclusão que deve suceder às humilhações. O nosso mundo não se compadece com esta filosofia despropositada - quer vencedores e, podendo, faz deles vencedores absolutos.
Por isso, quando enfrento o velho retrato da casa de Ponte de Lima, iluminado pela penumbra do Verão, filtrada pêlos freixos e pelas cortinas da família, penso que o mundo está bem feito. Não muito bem feito. Mas razoavelmente bem feito.
in Revista Notícias Sábado – 27 Maio 2006
Na nossa sociedade democrática isso seria impossível, mas a senhora ficara a viver num mundo anterior ao 'fox-strot', e não valia a pena chamá-la a qualquer tipo de razão. Pensar (e dizer), até 1940, que havia perigo de o dr. Afonso Costa regressar para expulsar os padres e confiscar as igrejas era um absurdo até para crentes na vida depois na morte - mas fazia-lhe bem, mantendo-a desperta para o mundo da política, geralmente inacessível às mulheres da sua idade. Do mal o menos, comentava o velho doutor Homem, meu pai, que sempre fora o preferido da Tia Benedita e a quem ela legou a totalidade das peças da Companhia das índias. O velho advogado dizia, na sua ingenuidade, que a República era boa para atemorizar velhinhas, se bem que a desordem cronológica da senhora o assustasse.
A minha sobrinha Maria Luísa, que vive em Braga, a cidade que várias vezes aclamou D. Miguel e por muitos anos aguardou o seu regresso (anunciado por frades, generais sem exército e profetas alucinados de aldeias minhotas), acha pitoresco que a família conserve o retraio do príncipe naquele lugar de destaque e várias vezes perguntou se não era melhor mandar restaurá-lo e entregá-lo a um museu. A hipótese não é despropositada nem original, mas os Homem sempre gostaram de velharias — e das suas velharias muito mais. Consegui demovê-la da ideia quando lhe garanti que existe uma gravura do rosto do príncipe, de Franz Stöber, feita na Áustria a partir do original - e que Stöber é o interessante pintor do funeral de Beethoven. Esta associação salvou o retrato de Ponte de Lima. Ora, os caracóis do príncipe (visíveis no quadro ítalo-austríaco, mas diluídos na representação pátria), mais do que as suas diabruras e heroísmos, são património da família por motivos inexplicáveis até hoje.
Os livros de história pátria não deixaram de festejar os vencedores e os heróis do Mindelo, do cerco do Porto, de Angra e do teatro romântico. Portugal está cheio de derrotados que raramente mereceram atenção diante da hagiografia dos vencedores. Da desconhecida Dona Teresa, mãe do nosso primeiro rei, aos fidalgos que desafiaram o magnífico D. João II e por isso foram supliciados, passando pelos assassinos de Inês de Castro, por D. Leonor Teles e pelo seu conde, ou pelos vícios bonacheirões do nosso trono — há por certo, aí algumas injustiças no juízo dos nossos contemporâneos, habituados ao heroísmo das vitórias e à queima de arquivos. Ora, de alguma maneira, o retrato de D. Miguel lembra-nos a virtude da derrota.
O velho doutor Homem, meu pai, assegurava que ninguém no seu perfeito juízo sabia mais do que três ou quatro frases do discurso justificativo de José Acúrsio das Neves em defesa do príncipe, e que provavelmente isso não teria importância porque as opções do passado não podem alterar-se dois séculos depois. O facto é que os homens não fortalecem o seu carácter colocando--se sempre do lado dos vencedores. Há uma estranha serenidade que só se adquire nas derrotas e, algumas vezes, na reclusão que deve suceder às humilhações. O nosso mundo não se compadece com esta filosofia despropositada - quer vencedores e, podendo, faz deles vencedores absolutos.
Por isso, quando enfrento o velho retrato da casa de Ponte de Lima, iluminado pela penumbra do Verão, filtrada pêlos freixos e pelas cortinas da família, penso que o mundo está bem feito. Não muito bem feito. Mas razoavelmente bem feito.
in Revista Notícias Sábado – 27 Maio 2006
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