sábado, maio 06, 2006

O luxo da História

ANNA MOFFO - o velho doutor Homem, meu pai, apreciava Anna Moffo, mais do que a Callas, e creio que isso se devia a uma tendência definitiva para embirrar e que se apoderou dele durante a década de sessenta. Ao ver chegado o crepúsculo da vida, esse período em que se é permitido ou tolerado, o velho advogado entendeu que poderia recompensar-se a si mesmo de muitos anos de tolerância avulsa dedicada a compreender os desvarios dos outros. Aturou alguns, quer por boa educação quer por falta de paciência para entrar em disputas sobre o sen­tido da vida. Porém, o que alguns confundiam com bonomia e concordância, era apenas a manifestação, sei-o hoje, de uma certa altivez do seu feitio. Na verdade, não estava para aquilo.

Num mundo que começava a ficar dividido entre esquerdas e direitas, e no qual as esquerdas eram apoteóticas e as direitas estavam apoplécticas, o velho doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida. A esta distância, vejo que foi um homem sensato. Não foram cativantes, por assim dizer, os anos sessenta. Para quem não precisou de esperar trinta anos para decidir que o doutor Salazar servia para capelão mas não para acompanhar as vicissitudes do mundo, os anos sessenta não foram nem uma novidade nem uma contrariedade. Estava escrito que seriam assim e que teriam de existir períodos semelhantes. A pátria era um lugar sereno e familiar, cheio de gente modesta maltratada sem o saber.

O velho doutor Homem, meu pai, que conhecera a boémia em Paris e tratara de negócios em Londres - tudo antes da Guerra -, sabia que exis­tia um mundo para lá de Vilar Formoso e, com toda a certeza, para além de Biarritz. Ele experimentara-o com a volúpia do andarilho embevecido e a moderação dos homens de bem. Ou seja, com a cautela dos portuguesinhos. O seu luxo cosmopolita, que até aí fora pago pela bolsa paterna, passou, depois do casamento e do nascimento dos filhos, a ser uma espécie de sublevação e revolta contra o país onde, des­graçadamente, uma sardinha no pão era considerada um meridiano aceitável. Arrastando consigo uma família de crianças turbulentas que invadia hotéis balneares com a graciosidade de zés-pereiras, ele sempre acreditou que as viagens, o conhecimento do mundo, o domínio seguro de mapas de estradas e a prática de línguas estrangeiras eram portas que forneciam, necessariamente, ilustração capaz de nos afastar da pequenez da pátria. Não que ele a renegasse. Mas embirrava bastante com ela e com o doutor Salazar. E essa era uma sensação que tomava conta do velho doutor Homem, meu pai, ao reentrar em Portugal depois de percorrer centenas de quilómetros pelas miseráveis estradas espanholas.

Os anos sessenta não foram, pois, uma grande novidade. Estava escrito que seriam assim. A educação liberal, o cinema e a generosidade dos cos­tumes, longe de produzirem uma geração interessada em reformar a pátria e em civilizar a política, fabricaram grupos de rapazes de mau feitio e jovens senhoras desejosas de degradação e de liberdade. Se o desejo de degradação é compreen­sível e até justificável, e o de liber­dade ainda mais, já a formação de gente de mau feito me parece questão de carácter. Num país que não desconhecia as prisões políti­cas, que marcaram a nossa história, os rapazes revolucionários dos finais dos anos sessenta apresen­tavam uma determinação sacer­dotal invejável, cheia de rigores marxistas e de disciplina militante. De modo que o doutor Homem, meu pai, decidiu gozar a vida.

Para isso necessitou de uma dose substan­cial de paciência. Vendo o caminho que as coisas tomavam, e prevendo revoluções e catástrofes (que, de qualquer modo, só se realizaram pela metade), o velho advogado suportou com estoicismo as ilusões dos outros, sorrindo afavelmente para os excessos cometidos e a cometer. "Filosofemos", pedia um derrotado político nas páginas do 'Eusébio Macário', de Camilo. Quer dizer: "Mudemos ao sabor da corrente - e inventemos uma explicação." Ele nunca precisou de evitar esses escolhos. Sobrevivendo largos meses ao 25 de Abril, recordo a sua resposta quando lhe vieram dizer que as colónias iriam tornar-se independentes e o império desfazer-se em poeira: "O senhor D. Pedro já começou o trabalho há muito, no Ipiranga." Um velho conservador nunca se surpreende com a história.

in Revista Notícias Sábado – 6 Maio 2006